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Toda Constituição é viva enquanto conectar — e não apenas ordenar

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    gleniosabbad
  • 1 de nov.
  • 5 min de leitura

Rizoma e Constituição: entre o centro legitimador e a imanência do direito


Glênio Sabbad Guedes — Advogado


1. Introdução — Da árvore à rede


A filosofia do direito moderno nasceu sob a sombra da árvore: da pirâmide normativa de Kelsen ao tronco lógico do Estado soberano, o direito sempre foi imaginado como um organismo hierarquizado, de raízes fundadoras e ramos derivados. Mas o século XXI não se reconhece mais nesse espelho. O Estado já não é o único produtor de normatividade; tratados, tribunais internacionais, ordens privadas e algoritmos de decisão partilham com ele a capacidade de criar regras, valores e sentidos.

O que se vê é um éclatement des sources, uma multiplicação de centros normativos que dissolve a imagem da pirâmide. Como observaram François Terré e Nicolas Molfessis, na 13ª edição de Introduction générale au droit (Dalloz, 2022, p. 369-371), “nosso direito funciona em rede, por capilaridades, num movimento de reticularidade e pluralidade”. Citando Deleuze e Guattari (Mille Plateaux, Minuit, 1980, p. 32), afirmam que a velha estrutura piramidal cede lugar à do rizoma, onde o direito “se expande por conexões e não por hierarquias”.

Essa mudança não é apenas descritiva — é ontológica. Ela exige repensar o que é uma Constituição: se não há mais um centro transcendental de validade, como sustentar a legitimidade da norma suprema? Se o direito é rizomático, o que resta do poder constituinte?


2. O dilema do centro legitimador


O Estado moderno, sobretudo desde Kelsen, ofereceu ao direito um centro legitimador. A Grundnorm — norma fundamental hipotética — garantia que toda validade descendesse de uma origem única, produzindo unidade no sistema jurídico. A Constituição era o topo da pirâmide, o ponto de convergência entre o ser e o dever-ser jurídicos.

Mas esse modelo sofre erosão em face da complexidade contemporânea. A Constituição já não é a única fonte de validade:


  • o direito internacional penetra no direito interno;

  • tribunais constitucionais dialogam com cortes estrangeiras;

  • o direito privado global (arbitragens, lex mercatoria, soft law) opera à margem da soberania estatal.


O centro não desaparece, mas se espalha. Como ensinou Emmanuel Gaillard, em Aspects philosophiques du droit de l’arbitrage international (LGDJ, 2008), vivemos um momento de “éclatement des sources”, no qual a validade não é mais unidirecional, mas “durabilité inter-ordres” — uma durabilidade entre ordens jurídicas. A legitimidade passa a ser relacional, e não hierárquica.


3. O paradigma rizomático


O rizoma, em Mille Plateaux, é o contrário da árvore. Deleuze e Guattari o definem por seis princípios — conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura assignificante, cartografia e decalque.


“Um rizoma não começa nem termina; ele está sempre no meio, entre as coisas.” (p. 31)“A multiplicidade muda de natureza à medida que aumenta suas conexões.” (p. 32)

O rizoma é, pois, uma estrutura de imanência, onde as partes se conectam sem depender de um centro. No campo jurídico, isso significa que o direito pode produzir coerência sem recorrer a um fundamento transcendental. O que garante a unidade não é mais o poder constituinte originário, mas a consistência comunicativa das práticas e das instituições.

A racionalidade jurídica deixa de ser dedutiva e passa a ser relacional, cartográfica, dialogal. Cada norma é válida enquanto se conecta coerentemente às demais — não porque deriva de uma origem metafísica, mas porque se inscreve num campo de sentido partilhado.


4. Constituição e imanência


Como conciliar, então, a fluidez do rizoma com a rigidez da Constituição?A resposta está em compreender a Constituição não como um ponto fixo, mas como um plano de imanência — uma superfície de conexão entre ordens jurídicas, políticas e sociais.

A Constituição cumpre duas funções distintas:


4.1. A função fundacional

É a Constituição como norma de normas, fundamento de validade — indispensável para a previsibilidade e a segurança jurídica.Mas, isolada, essa função é insuficiente: ela não explica como novas normatividades emergem fora do Estado e são absorvidas no sistema.

4.2. A função relacional

É a Constituição como dispositivo tradutor: ela conecta ordens distintas, harmoniza conflitos de validade, cria pontes entre o nacional e o transnacional, entre o político e o jurídico. Nessa perspectiva, a Constituição é rizomática: um nó de convergência, não um trono de comando.

Ela deixa de ser o “centro legitimador” para tornar-se a forma suprema de conexão. Ou, nas palavras de Paul Ricoeur (Le Juste, 1995), um “símbolo de mediação” — uma narrativa que dá sentido e continuidade ao pluralismo normativo.


5. A racionalidade comunicativa do direito rizomático


Aqui se aproxima a filosofia de Habermas da de Deleuze. O que em Deleuze é “plano de imanência”, em Habermas é “espaço público comunicativo”: ambos descrevem uma ordem sem centro transcendental, sustentada por interações racionais. A legitimidade surge não da imposição, mas do reconhecimento intersubjetivo — um consenso em devir.

Nesse quadro, a Constituição continua a ser o texto supremo, mas se legitima continuamente no diálogo: entre intérpretes, tribunais, legisladores e cidadãos. É o que Sílvio Gallo chama de “cartografia rizomática”: um mapa sempre refeito, no qual o direito se redesenha a cada conexão.


6. Rizoma e Constituição: uma síntese


O modelo piramidal fundava a unidade do direito na origem. O modelo rizomático a funda na relação. A Constituição, nesse novo paradigma, é viva enquanto conectar — e não apenas ordenar.

Ela não perde sua força normativa; apenas deixa de ser um cume para tornar-se uma trama. Entre o centro legitimador e a imanência do direito, a filosofia revela que a estabilidade não vem da rigidez, mas da capacidade de adaptação — da elasticidade que permite às normas se ligarem sem se dissolverem.

O poder constituinte, portanto, não é um ato do passado, mas um processo permanente de criação de sentido jurídico. Cada diálogo institucional, cada sentença constitucional, cada tratado incorporado é um novo fio que prolonga o rizoma constitucional.


“Toda Constituição é viva enquanto conectar — e não apenas ordenar.”

7. Conclusão — O novo lugar da filosofia do direito


O desafio contemporâneo é repensar a filosofia constitucional não mais como metafísica do fundamento, mas como hermenêutica da conexão. O jurista deixa de buscar a origem da validade e passa a investigar como as normas se sustentam mutuamente em um espaço plural. A filosofia do direito, nesse horizonte, é a arte de compor consistência sem centralidade.

Como Deleuze diria, o pensamento deixa de “representar o real” para “produzir o possível”. O direito, por sua vez, deixa de reproduzir o poder para organizar a comunicação. A Constituição, nesse sentido, continua sendo o coração do direito — mas um coração em rede, pulsando por capilaridades e não por ordens verticais.


Referências bibliográficas


  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille Plateaux: Capitalisme et schizophrénie. Paris: Éditions de Minuit, 1980.

  • TERRÉ, François; MOLFESSIS, Nicolas. Introduction générale au droit. 13ᵉ éd. Paris: Dalloz, 2022, p. 369-371, note 5.

  • GAILLARD, Emmanuel. Aspects philosophiques du droit de l’arbitrage international. Paris: LGDJ, 2008.

  • RICOEUR, Paul. Le Juste. Paris: Esprit, 1995.

  • HABERMAS, Jürgen. Droit et Démocratie: entre faits et normes. Paris: Gallimard, 1997.

  • GALLO, Sílvio. Deleuze & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

  • KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. Wien: Franz Deuticke, 1960.

  • NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.


 
 
 

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