Se o objeto determina o método, a Ciência do Direito necessita de uma epistemologia transdisciplinar
- gleniosabbad
- 2 de nov.
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“O conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade, e não dividi-la.”— Edgar Morin
Por Glênio Sabbad Guedes ( advogado )
1. Introdução: o Direito diante da complexidade
O Direito, que nasceu como promessa de estabilidade, enfrenta hoje a incerteza de um mundo em mutação. A globalização, as tecnologias digitais, as biociências, a inteligência artificial e as novas ecologias da convivência dissolvem as fronteiras entre o jurídico e o social. A norma já não basta: o jurista precisa compreender o próprio modo como conhece, interpreta e legitima. Por isso, o problema do conhecimento jurídico — a epistemologia jurídica — não é um luxo teórico, mas uma necessidade vital de uma ciência que lida com a vida em comum.
A epistemologia jurídica, ensina Christian Atias, é o momento reflexivo em que o Direito se pensa a si mesmo: o instante em que o saber normativo interroga as suas próprias condições de validade. E, como observa Julio Armando Rodríguez Ortega, ela é também um gesto de autocrítica civilizatória: busca compreender como as formas jurídicas se relacionam com os paradigmas científicos e sociais de cada época. Sem essa consciência reflexiva, o Direito corre o risco de se tornar uma técnica sem alma.
2. O sentido e o objetivo da epistemologia jurídica
O objeto da epistemologia jurídica não é a norma em si, mas o processo de formação, justificação e aplicação do conhecimento jurídico. Ela pergunta: o que é conhecer juridicamente? Como o jurista transforma o fato em valor e o valor em norma? E, sobretudo, quais são os limites de validade desse conhecimento?
O objetivo da epistemologia é restituir ao Direito a consciência de sua historicidade e de sua função ética. Como ciência da convivência, o Direito não existe fora da linguagem, da moral e da cultura. Epistemologia, portanto, é também hermenêutica — a arte de compreender o sentido — e ética — a consciência da responsabilidade do intérprete.
Por isso, Paulo Ferreira da Cunha adverte: “Os juristas, antes de técnicos, são verdadeiros filósofos.” A preparação do jurista é jurídica, naturalmente, mas ela deve ser ainda interdisciplinar e, antes de tudo, hermenêutica e ética; logo, filosófica. Não há metodologia sem hermenêutica; não há metodologia sem filosofia.
3. O espelho alemão: complexidade e crise como fundamento epistemológico
Como observou Bernd Rüthers, em sua Rechtstheorie (1999), cada época de ruptura política ou moral produz uma crise de consciência teórica no Direito. O pensamento jurídico, diz ele, tem as suas “Konjunkturen und Krisen” — flutuações e crises — que acompanham as mudanças de regime e de mentalidade. Após o nacional-socialismo e a divisão alemã, tornou-se evidente que a ciência jurídica não é neutra: ela reflete a estrutura de valores de seu tempo.
Rüthers define o Direito como “um espelho inevitável da complexidade do sistema social”. Com isso, desloca o problema jurídico da norma para o conhecimento: compreender o Direito é compreender a sociedade que o produz. A epistemologia jurídica, então, deixa de ser mera técnica e passa a ser uma autocrítica da racionalidade jurídica — um exame da forma como o saber jurídico se constrói e se legitima no meio das transformações históricas.
4. O jurista acrobata e a crise da consciência epistemológica
Rüthers denuncia o surgimento do “jurista-acrobata” (Auslegungsakrobat), aquele que, com habilidade técnica e destreza formal, dobra a norma conforme os ventos do poder. Historicamente, diz ele, “os juristas mostraram-se verdadeiros acrobatas da interpretação”, capazes de adaptar a ordem jurídica às ideologias do momento, seja sob o nacional-socialismo, seja sob outros regimes autoritários.
A metáfora é precisa: o acrobata move-se no ar, sem solo. Assim é o jurista que domina a técnica mas ignora o fundamento ético e epistemológico de seu ofício. Sua ciência torna-se mero jogo de equilibrista, uma coreografia do poder sem consciência do sentido.
Essa imagem permite compreender o que Ferreira da Cunha, de modo convergente, adverte: sem filosofia, o método jurídico é cego; sem ética, é vazio. O jurista que não conhece os limites de seu próprio conhecimento não interpreta — manipula. Por isso, toda epistemologia jurídica deve começar com um ato de humildade: saber que o saber jurídico é sempre situado, histórico e incompleto.
5. A epistemologia transdisciplinar: uma nova racionalidade
A epistemologia transdisciplinar não propõe a dissolução das ciências, mas a conexão dos seus modos de ver. Ela busca compreender o Direito como sistema vivo, em diálogo com a sociologia, a economia, a linguística, a ecologia e as neurociências — sem perder a centralidade da ética e da linguagem.
Em termos práticos, essa epistemologia se realiza quando:
o juiz dialoga com a biologia e o direito ambiental para interpretar a dignidade ecológica;
o constitucionalista incorpora a semiótica e a teoria da comunicação para compreender o discurso de poder;
o advogado utiliza dados da psicologia cognitiva para analisar a tomada de decisão e o viés hermenêutico;
e o legislador pensa a norma como instrumento de equidade e não apenas de coerção.
Transdisciplinaridade, portanto, não é retórica de integração, mas nova racionalidade da convivência. O jurista deixa de ser acrobata e volta a ser intérprete da humanidade — aquele que liga, e não aquele que separa.
6. Conclusão
Se o objeto determina o método, então um objeto complexo exige um método complexo. O Direito, como ciência da convivência, precisa de uma epistemologia transdisciplinar que o liberte da clausura técnica e o reconcilie com o humano. Somente assim o jurista poderá reencontrar o solo que Rüthers reclamava, a ética que Ferreira da Cunha exigia e a lucidez que Morin nos ensinou: a de que todo conhecimento que não se reconhece como parte do mundo, destrói o mundo que pretende compreender.
Bibliografia
ATIAS, Christian. Épistémologie du Droit. Paris: Presses Universitaires de France, 1985.
FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Metodologia Jurídica – Iniciação e Dicionário. Porto: Almedina, 2021.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.
RÜTHERS, Bernd. Rechtstheorie: Begriff, Geltung und Anwendung des Rechts. München: C.H. Beck, 1999.
RODRÍGUEZ ORTEGA, Julio Armando. Epistemología Jurídica. Bogotá: UniAcademia – Leyer, 2021.

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