Por um ensino rizomático e transversal do Direito
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Por Glênio S Guedes ( advogado )
1. O direito e o risco da repetição
Durante séculos, o ensino jurídico foi construído sobre o paradigma da árvore: raízes profundas, troncos hierárquicos e galhos previsíveis. Cada ramo representava uma disciplina autônoma, e o estudante era treinado a seguir o caminho das normas e das classificações, não o das perguntas. Esse modelo formou técnicos competentes, mas frequentemente desatentos ao sentido humano e político do Direito.
Hoje, porém, as condições do saber mudaram. Assim como na filosofia — lembra Sílvio Gallo —, ensinar Direito já não pode significar transmitir conteúdos prontos. Ensinar é provocar pensamento. E, quando se trata de pensar juridicamente, é preciso abandonar o medo da desordem: a complexidade não é inimiga da razão; é a sua respiração.
2. Do modelo arbóreo ao rizoma
Inspirando-se em Deleuze e Guattari, Gallo propôs uma pedagogia rizomática: em vez de raízes fixas, o rizoma se espalha horizontalmente, cria conexões imprevisíveis e rompe hierarquias. Transposta ao ensino jurídico, essa metáfora nos convida a ver o Direito não como um sistema fechado, mas como uma rede viva de interações normativas, sociais e linguísticas.
O rizoma jurídico não substitui o Código pela anarquia, mas reconhece que o sentido do Direito emerge do diálogo entre textos, práticas, emoções e saberes. O professor, nessa ótica, deixa de ser o “guia supremo” da interpretação e se torna um mediador de experiências cognitivas. A aula jurídica deixa de ser monólogo e passa a ser oficina — um espaço de criação conceitual, de experimentação e de crítica.
3. A transversalidade como método
A transversalidade é o outro nome do pensamento vivo. Significa permitir que o Direito atravesse e seja atravessado por outras áreas: filosofia, economia, literatura, neurociência, linguística, sociologia. O ensino transversal rompe o isolamento dogmático e revela o Direito como campo simbólico, cultural e comunicativo.
Um exemplo: discutir a imputabilidade penal à luz da neurociência não reduz a norma ao neurônio; amplia a compreensão da responsabilidade. Assim, o Direito se reencontra com sua vocação antropológica — a de compreender o humano em toda a sua complexidade. Ensinar Direito transversalmente é, pois, ensinar o diálogo entre mundos: o jurídico, o ético, o biológico, o tecnológico, o linguístico.
4. A paciência com os conceitos jurídicos
Do mesmo modo que o filósofo precisa ter paciência com os conceitos, o jurista precisa demorar-se no texto. A pressa hermenêutica, típica dos tempos digitais, substitui o raciocínio pela opinião, a leitura pela sentença automática. A paciência jurídica é uma forma de resistência intelectual: consiste em voltar a habitar o texto da lei como espaço de criação, não de reprodução.
Cada conceito jurídico — responsabilidade, culpa, liberdade, contrato — deve ser tratado como um organismo vivo, mutável e relacional. O professor de Direito, nesse cenário, é jardineiro do pensamento jurídico: cultiva conceitos, poda excessos, aduba com exemplos, e observa o crescimento múltiplo das ideias.
5. Transdisciplinaridade e ética do ensino jurídico
Um ensino rizomático e transversal não é apenas uma metodologia: é uma ética. Pressupõe humildade diante da complexidade e respeito pela pluralidade das interpretações. O Direito, afinal, não é uma máquina de respostas, mas uma linguagem de convivência.
A transdisciplinaridade jurídica, inspirada em Morin e Nicolescu, não dissolve fronteiras, mas as torna porosas. Ela permite que o raciocínio jurídico dialogue com o científico sem perder sua singularidade normativa, e com o filosófico sem perder sua força pragmática. O jurista, assim, torna-se intérprete e inventor, técnico e poeta, racional e sensível.
6. O professor como cartógrafo
No paradigma rizomático, o professor de Direito é um cartógrafo do saber jurídico. Em vez de transmitir mapas prontos, ele ensina os alunos a desenhar os próprios mapas, a navegar na incerteza, a compreender o Direito como um território em movimento. Ensinar Direito é ensinar a pensar o Direito — e pensar é sempre criar.
A sala de aula torna-se, então, uma usina de pensamento jurídico: o lugar onde se elaboram conceitos, se testam hipóteses e se aprende a escutar. Um ensino assim transforma a dogmática em diálogo e o estudante em sujeito ativo da interpretação.
Conclusão: o Direito como rizoma ético
Defender um ensino rizomático e transversal do Direito é propor uma revolução silenciosa: deslocar o eixo do ensino jurídico da memorização para a criação, da hierarquia para a horizontalidade, do sistema fechado para a rede aberta. Trata-se de compreender que o Direito vive nas conexões — entre normas e valores, entre cérebro e sociedade, entre passado e futuro.
Assim como Gallo reivindica uma filosofia que ensina a pensar, o ensino jurídico do século XXI deve reivindicar um Direito que ensina a compreender. Pois só há verdadeira justiça onde houver pensamento — e só há pensamento quando há paciência com os conceitos.
Bibliografia
GALLO, Sílvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio. Campinas, SP: Papirus, 2020.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 3. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999.

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