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Para Além da Fragmentação: O Direito no Século XXI à Luz da Carta da Transdisciplinaridade

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    gleniosabbad
  • 8 de out.
  • 4 min de leitura

Por Glênio Sabbad Guedes


Resumo


O presente ensaio propõe uma reflexão sobre a crise do paradigma jurídico moderno, ainda preso a uma visão fragmentada do conhecimento e a uma racionalidade mecanicista. Em contraposição, apresenta-se a transdisciplinaridade como novo horizonte epistemológico, ético e ontológico para o Direito contemporâneo — uma via de reencontro entre norma e vida, razão e sensibilidade, ciência e sabedoria.

A análise dialoga com os princípios da Carta da Transdisciplinaridade (Arrábida, 1994) e com o pensamento de Basarab Nicolescu, Edgar Morin, Thomas Kuhn, Humberto Maturana, Francisco Varela e Boaventura de Sousa Santos, entre outros. Defende-se que a transdisciplinaridade não é apenas uma nova metodologia, mas uma reforma profunda do pensamento jurídico e de sua função social.


1. Introdução


O Direito moderno nasceu sob o signo da razão cartesiana. Da busca por clareza e distinção, herdou um admirável rigor analítico — mas também a fragmentação. Essa fragmentação, útil em certo momento histórico, tornou-se obstáculo diante da complexidade do mundo contemporâneo: tecnológico, ecológico, cultural e espiritual.

Como advertia Thomas Kuhn, há momentos em que os paradigmas científicos deixam de explicar as anomalias da realidade. No campo jurídico, essa crise se traduz em decisões desconectadas da vida, tecnicismos estéreis e uma normatividade que já não dialoga com a sociedade.

A transdisciplinaridade, tal como formulada por Basarab Nicolescu e desenvolvida por Edgar Morin, propõe uma ruptura criadora: pensar através, entre e além das disciplinas, reconhecendo múltiplos níveis de realidade e a lógica do “terceiro incluído”. Aplicada ao Direito, essa proposta convida à integração entre ciência, filosofia, arte e ética — ou seja, à reconstrução da unidade perdida do saber jurídico.


2. A Carta da Transdisciplinaridade e o Direito


Adotada no Convento da Arrábida, em 1994, a Carta da Transdisciplinaridade nasceu como resposta à especialização excessiva que ameaçava o próprio sentido do conhecimento. Ao proclamar a irredutibilidade do ser humano, a Carta propõe uma ciência reconciliada com a consciência.

No campo jurídico, esse princípio traduz-se na necessidade de superar a ideia abstrata de “sujeito de direito” e de reencontrar a pessoa concreta — emocional, histórica e cultural. O Direito deixa de ser um código fechado e se converte em linguagem viva, permeada por valores, afetos e símbolos.

Outro princípio essencial da Carta é o da lógica do terceiro incluído, que rompe a rigidez binária do “culpado ou inocente”, “procedente ou improcedente”. Entre os polos opostos, há uma zona de mediação, compreensão e reparação — espaço natural da justiça restaurativa, da conciliação e da equidade.

Assim, o Direito torna-se rizomático, para usar a metáfora de Deleuze e Guattari: uma rede viva de conexões entre saberes e experiências, onde a justiça se faz relação e não apenas norma.


3. O Quadro da Transdisciplinaridade Jurídica


A seguir, apresentam-se as correspondências entre os princípios da Carta da Transdisciplinaridade e os valores do Direito contemporâneo.


Artigo da Carta

Princípio Transdisciplinar

Equivalente Jurídico Contemporâneo

1

Irredutibilidade do ser humano

Pessoa integral, não o sujeito abstrato.

2

Lógica do terceiro incluído

Mediação, justiça restaurativa, proporcionalidade.

3

Complementaridade dos saberes

Articulação entre dogmática, sociologia e história.

4

Racionalidade aberta

Superação da neutralidade judicial.

5

Diálogo com as humanidades

Reconhecimento da narrativa e da emoção.

6

Multirreferencialidade

União entre contexto histórico e valores universais.

7

Contra a superciência

Pluralismo metodológico e epistemológico.

8

Dignidade planetária

Fundamento de um Direito ecológico e global.

9

Respeito a mitos e religiões

Diálogo intercultural e simbólico.

10

Transculturalidade

Pluralismo jurídico e epistemologias do Sul.

11

Reforma da educação

Ensino jurídico contextual e crítico.

12

Primazia da pessoa sobre o mercado

Resistência à mercantilização do Direito.

13

Ética do diálogo

Advocacia colaborativa e justiça consensual.

14

Rigor, abertura e tolerância

Virtudes essenciais do jurista do século XXI.


4. Educação, Ética e Planetaridade


A transdisciplinaridade exige também uma reforma da formação jurídica. Ensinar Direito é ensinar a pensar complexamente: conectar o texto à vida, o caso à comunidade, a norma ao valor. O jurista do futuro será um intérprete da complexidade, capaz de transitar entre as ciências e dialogar com diferentes racionalidades.

Essa mesma lógica se estende à ética e ao meio ambiente. A Carta propõe uma dignidade planetária, que ultrapassa a fronteira humana e reconhece valor intrínseco à Terra e aos seres vivos. Surge assim a ideia de um Direito Planetário, fundado não apenas em direitos humanos, mas em direitos da Terra — expressão de uma nova consciência ecológica e cósmica.


5. Conclusão


O Direito do século XXI precisa reaprender a escutar. Escutar o invisível, o marginal, o simbólico, o outro. Essa escuta só é possível se o Direito abandonar o isolamento disciplinar e reencontrar sua dimensão humana, ética e poética.

A Carta da Transdisciplinaridade não é um texto técnico: é um convite à reconciliação entre o saber e o ser. Lida sob o manto de Têmis, ela recorda que a justiça verdadeira não é o equilíbrio frio da balança, mas a harmonia dinâmica entre razão, sensibilidade e prudência.

Compreender, como ensinou Edgar Morin, é resistir à barbárie da simplificação. O desafio do jurista contemporâneo é esse: transformar o conhecimento em consciência e a norma em sabedoria.


Nota Editorial


Este ensaio inspira-se nos princípios da Carta da Transdisciplinaridade (Arrábida, 1994) e nas obras de Basarab Nicolescu, Edgar Morin, Thomas Kuhn, Humberto Maturana, Francisco Varela e outros pensadores da complexidade. Mais do que uma revisão bibliográfica, o texto constitui uma reflexão aberta, orientada pelo diálogo entre Direito, Filosofia, Ciência e Ética, em busca de um saber que una — e não fragmente — o humano.

 
 
 

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