O perigo do viés definicional : "animais não têm linguagem" não seria uma alegação autorrealizável?
- gleniosabbad
- 28 de out.
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Por Glênio S Guedes ( advogado )
1. Introdução
A afirmação de que "animais não têm linguagem" é recorrente no discurso científico e filosófico, sustentada por séculos de tradição logocêntrica que vincula a linguagem à racionalidade e, por conseguinte, à humanidade. Entretanto, à luz das contribuições de Eva Meijer (2018), Leonie Cornips e de Felice Cimatti (Mente e linguaggio negli animali. Introduzione alla zoosemiotica cognitiva, 2013), bem como das evidências empíricas emergentes sobre a complexidade comunicativa dos cetáceos, é possível argumentar que tal afirmação não apenas carece de neutralidade, mas opera como uma alegação autorrealizável que se sustenta através de um viés definicional sistemático.
2. O viés definicional e o logocentrismo
O logocentrismo, conceito central na crítica derridiana, descreve a tendência ocidental de privilegiar a linguagem verbal humana como paradigma de significação. Nesse enquadramento, "linguagem" é definida por critérios que incluem, por exemplo, sintaxe recursiva, arbitrariedade do signo e capacidade de referenciação deslocada no tempo e no espaço.
Eva Meijer argumenta que essa moldura conceitual é construída com a exclusão deliberada das formas de comunicação não humanas. Trata-se, assim, de um viés definicional: ao criar a categoria, já se estabelece que a maioria dos sistemas comunicativos animais não se encaixará nela. A consequência é um ciclo epistemológico fechado — a alegação "animais não têm linguagem" se cumpre não por comprovação empírica, mas por desenho conceitual.
3. As evidências empíricas de Cornips
A pesquisa etnográfica de Leonie Cornips com vacas-leiteiras oferece um contraponto concreto a esse viés. Ao conceber a linguagem bovina como prática distribuída entre corpo, ambiente e sons, Cornips mostra que o significado pode emergir de gestos, posicionamentos e interações corporais, articulados a vocalizações com funções identificáveis.
Essas práticas comunicativas, embora não cumpram todos os requisitos da definição logocêntrica, atendem plenamente a uma concepção semiótica mais ampla de linguagem — algo próximo da "linguagem incorporada, multimodal e sensorial" que Cornips descreve. Se o critério fosse ajustado para contemplar tais formas, a fronteira entre "ter" e "não ter" linguagem se deslocaria significativamente.
4. A complexidade comunicativa dos cetáceos: evidências de uma linguagem estruturada
As pesquisas contemporâneas com cetáceos oferecem exemplos ainda mais contundentes dos limites do viés definicional. Conforme documentado recentemente, os sistemas comunicativos de baleias e golfinhos apresentam níveis de complexidade que desafiam diretamente os critérios logocêntricos tradicionais.
Os golfinhos, por exemplo, utilizam assobios específicos que funcionam como verdadeiros nomes próprios individuais — uma capacidade de referenciação que atende precisamente ao critério de arbitrariedade do signo e identificação pessoal. Mais notável ainda é a descoberta de que as canções das baleias incluem não apenas nomes próprios, mas também estruturas rímicas e organizações análogas a estrofes poéticas humanas.
A análise estrutural dessas comunicações revela uma arquitetura hierárquica sofisticada: unidades sonoras individuais se combinam em frases, que por sua vez se organizam em temas recorrentes, culminando em composições musicais completas. Esta organização sintática complexa — com padrões de repetição específicos e variações temáticas — sugere capacidades generativas que rivalizam com a recursividade linguística humana.
Tais evidências tornam particularmente problemática a exclusão categórica dos cetáceos do domínio linguístico. Se os critérios incluíssem multimodalidade (cliques, assobios e canções), estruturação hierárquica, referenciação individual e organização estética, os sistemas comunicativos dos cetáceos se qualificariam inequivocamente como linguagem.
5. A perspectiva da zoossemiótica cognitiva
No livro Mente e linguaggio negli animali, Felice Cimatti propõe a zoossemiótica cognitiva como campo de estudo que rompe com a dicotomia rígida entre linguagem humana e comunicação animal. Para Cimatti, a questão não é se os animais "possuem" ou "não possuem" linguagem segundo um padrão humano, mas sim reconhecer que cada espécie constrói um espaço semiótico próprio, com regras internas de significação e estratégias cognitivas adaptadas ao seu ambiente.
Os cetáceos exemplificam perfeitamente esta proposta: suas "linguagens" operam com lógicas internas próprias — temporalidades estendidas nas canções das baleias, sistemas de ecolocalização integrados à comunicação social nos golfinhos, e repertórios vocais que se transmitem culturalmente entre gerações. Ao adotar essa perspectiva, percebe-se que a negação categórica da linguagem animal é metodologicamente insustentável: ela ignora sistemas semióticos que, embora diferentes na forma, cumprem funções comunicativas análogas às humanas em termos de coordenação social, transmissão de conhecimento e construção de sentido.
6. Por que isso importa: implicações éticas e jurídicas
A recusa em reconhecer a linguagem animal não é neutra. Como lembra Meijer, há uma "longa história de opressão" associada à negação da linguagem — na história humana, isso foi usado para justificar exclusões e desigualdades. No campo da relação humano-animal, o mesmo mecanismo legitima práticas de exploração, ao atribuir aos animais uma suposta inferioridade cognitiva que os torna passíveis de tratamento como recursos.
O Paradigma Jurídico Brasileiro: Da Invisibilidade à Subjetividade
O trabalho pioneiro de Vicente de Paula Ataíde Junior sobre a capacidade processual dos animais oferece um exemplo paradigmático de como o viés definicional opera concretamente no sistema jurídico. O caso histórico dos cães Pretinha e Tom, em Porto União/SC, ilustra dramaticamente as consequências éticas e práticas de definições jurídicas limitantes.
No dia 26 de maio de 2021, estes dois animais foram deliberadamente alvejados sem motivo aparente. Pretinha foi atingida por dois tiros, no abdômen e na pata traseira; Tom teve uma pata fraturada por disparo de arma de fogo. Ambos sobreviveram, mas sofreram traumas evidentes — danos que qualquer observador reconheceria como moralmente significativos. Entretanto, o ordenamento jurídico brasileiro, baseado na classificação tradicional dos animais como "bens semoventes", inicialmente oferecia apenas a possibilidade de indenização material ao proprietário pelos "danos ao patrimônio".
A Perpetuação da Injustiça através de Categorias Jurídicas
A definição civilista tradicional dos animais como "bens" representa mais que uma escolha técnica — constitui uma decisão ética disfarçada de neutralidade jurídica. Como demonstra Ataíde Junior, essa classificação criou um bloqueio sistemático ao reconhecimento da dignidade intrínseca dos animais sencientes, forçando o sofrimento animal a permanecer juridicamente invisível.
O caso revela a perversidade ética desse sistema: dois seres capazes de sofrimento consciente foram deliberadamente feridos, mas só poderiam ser "reparados" como danos materiais ao proprietário. A definição tradicional transformava criaturas evidentemente sencientes em meros objetos de propriedade, negando-lhes qualquer consideração moral independente. Essa é a essência do viés definicional em operação: a categoria é construída de forma a garantir a exclusão, criando uma profecia autorrealizável de inferioridade moral.
Resistência Institucional e a Perpetuação do Viés
O viés definicional não opera apenas no nível conceitual, mas se materializa através de práticas institucionais concretas. O posicionamento inicial do Ministério Público de Santa Catarina no caso, considerando tratar-se de "interesses meramente particulares", exemplifica como definições arraigadas podem cegar operadores do direito para questões de justiça fundamental.
Essa resistência institucional revela que o viés definicional é um fenômeno sistêmico que se perpetua através da inércia das práticas jurídicas estabelecidas. Mesmo diante de evidências contundentes sobre senciência animal e sofrimento moral evidente, as instituições tendem a reproduzir categorias tradicionais, demonstrando como definições podem atuar como barreiras cognitivas que impedem o reconhecimento de injustiças.
Inovações Jurídicas como Ferramentas Anti-viés
A histórica sentença do Juiz Osvaldo Alves do Amaral, de 12 de setembro de 2023, marca um momento paradigmático na superação do viés definicional no direito brasileiro. Ao reconhecer a capacidade processual dos animais e conceder indenização por danos morais diretamente aos cães Pretinha e Tom, a decisão rompe com séculos de invisibilidade jurídica animal.
A solução jurídica proposta por Ataíde Junior — a categoria de "sujeitos despersonificados de direitos" — representa uma inovação especificamente desenhada para superar limitações definitórias. Essa "tecnologia de tutela jurídica" permite reconhecer direitos fundamentais sem incorrer nas implicações plenas da personalidade jurídica, oferecendo um caminho intermediário que respeita tanto a realidade científica sobre senciência animal quanto as estruturas jurídicas existentes.
Consequências Práticas da Mudança Paradigmática
A superação do viés definicional no direito animal tem implicações práticas imediatas. Como documenta Ataíde Junior, a definição tradicional gerou uma série de distorções jurídicas: inadequação para resolver casos de guarda após separações conjugais, onde a lógica da "partilha de bens" conflitava com a realidade afetiva das famílias multiespécie; proteção deficiente contra maus-tratos, uma vez que a violência era vista primariamente como dano patrimonial; e limitações processuais artificiais que impediam representação direta dos interesses animais.
O Papel do Direito Constitucional na Superação de Vieses
O artigo 225, § 1º, VII da Constituição Federal, que proíbe práticas que submetam animais à crueldade, oferece uma ferramenta hermenêutica fundamental para superar vieses definitórios infralegais. Como demonstra o caso, a reinterpretação constitucional permite que o direito evolua organicamente, superando definições obsoletas sem necessariamente aguardar mudanças legislativas formais.
Essa dinâmica revela um aspecto crucial do viés definicional: ele opera frequentemente através de camadas hierárquicas do ordenamento, onde definições infralegais podem contradizer princípios constitucionais mais amplos. A superação do viés exige, portanto, uma hermenêutica que priorize valores fundamentais sobre categorias tradicionais.
Federalismo Cooperativo como Laboratório Anti-viés
A iniciativa de estados brasileiros em reconhecer direitos animais através de legislação local, mesmo diante da competência federal sobre direito civil, ilustra como o federalismo pode funcionar como mecanismo de superação gradual de vieses definitórios. Estados pioneiros experimentam novas categorias jurídicas, criando pressão ascendente para mudanças no direito federal e demonstrando a viabilidade prática de inovações conceituais.
Implicações para o Reconhecimento da Linguagem Animal
O reconhecimento da complexidade linguística dos cetáceos, documentado na seção anterior, adquire dimensões jurídicas inéditas à luz do precedente brasileiro. Se animais com capacidades comunicativas sofisticadas — incluindo autoconsciência evidenciada pelos "nomes próprios" dos golfinhos e transmissão cultural das "canções" das baleias — podem ser reconhecidos como sujeitos de direitos, tornam-se questionáveis as bases legais que os reduzem a propriedade ou recursos exploráveis.
Os esforços científicos para "traduzir" essas linguagens não são apenas exercícios acadêmicos, mas podem fundamentar reivindicações de direitos específicos para espécies linguisticamente competentes. O viés definicional que nega linguagem aos animais conecta-se diretamente ao viés jurídico que lhes nega subjetividade — ambos se reforçam mutuamente na perpetuação da invisibilidade moral animal.
Lições Sistêmicas sobre Viés Definicional
O caso do direito animal brasileiro oferece lições aplicáveis a outras áreas onde vieses definicionais podem operar: primeiro, demonstra que definições aparentemente técnicas frequentemente carregam escolhas éticas implícitas que podem perpetuar injustiças sistêmicas; segundo, revela que a superação de vieses definitórios requer não apenas mudanças conceituais, mas transformações institucionais e processuais concretas; terceiro, mostra que inovações jurídicas criativas podem servir como pontes entre paradigmas antigos e novos, facilitando transições necessárias sem rupturas destrutivas; finalmente, evidencia que o viés definicional opera não apenas no nível teórico, mas através de práticas institucionais concretas que podem ser identificadas e transformadas.
Reconhecimento Linguístico e Direitos Específicos
Reconhecer que animais possuem formas complexas de linguagem:
a) Amplia a ética interespécies, exigindo novas formas de convivência baseadas no reconhecimento de competências comunicativas específicas;
b) Enriquece a linguística, ao incluir sistemas comunicativos não humanos como objetos legítimos de estudo e fonte de inovação conceitual;
c) Reconfigura o debate ambiental, pois fortalece argumentos pela preservação de espécies como sujeitos comunicativos e culturais, dotados de direitos intrínsecos, e não apenas como elementos ecológicos instrumentalmente valiosos;
d) Estabelece bases para marcos jurídicos que reconheçam direitos comunicativos específicos, incluindo proteção de sistemas culturais de transmissão de conhecimento e preservação de ambientes necessários para o exercício de capacidades linguísticas complexas.
7. Conclusão
À luz das evidências empíricas e dos argumentos teóricos de Meijer, Cornips e Cimatti, complementados pelas descobertas sobre a sofisticação linguística dos cetáceos e pelas inovações jurídicas pioneiras documentadas por Ataíde Junior, sustenta-se que a frase "animais não têm linguagem" é, sim, uma alegação autorrealizável — produto de um viés definicional que molda o objeto de estudo para garantir a exclusão dos não humanos.
As canções estruturadas das baleias, com suas rimas e organizações estéticas, os "nomes próprios" dos golfinhos e a complexidade hierárquica de seus sistemas comunicativos representam evidências empíricas que tornam insustentável a manutenção do viés logocêntrico. Paralelamente, a histórica sentença de Porto União, concedendo indenização diretamente aos cães Pretinha e Tom, demonstra que a superação de vieses definitórios tem consequências práticas imediatas e profundas para a justiça interespécie.
Superar esse viés não apenas altera o campo científico, mas também provoca mudanças éticas e políticas fundamentais, ao reconhecer a diversidade semiótica da vida no planeta e sua correspondente dignidade jurídica. O desafio, portanto, é redefinir tanto "linguagem" quanto "sujeito de direitos" de modo a contemplar a pluralidade dos modos de significação e sofrimento, deslocando-nos de concepções antropocêntrica e especistas para visões verdadeiramente ecológicas da comunicação e da justiça.
Os cetáceos, com seus sistemas comunicativos de complexidade crescentemente reconhecida, e os casos pioneiros de reconhecimento de direitos animais no Brasil oferecem-nos laboratórios naturais e jurídicos para essa redefinição conceitual urgente. Cada definição que criamos carrega consigo uma responsabilidade ética: a de reconhecer e proteger os direitos daqueles que podem ser afetados por nossas categorias conceituais. A tarefa é desenvolver sensibilidade para identificar quando definições aparentemente neutras estão perpetuando injustiças sistêmicas e coragem para promover as inovações necessárias para superá-las.
Referências
ATAÍDE JUNIOR, Vicente de Paula. Comentários à primeira sentença cível concessiva de indenização por danos morais para animais vítimas de maus-tratos. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 39, ano 11, p. 405-421. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2024.
CIMATTI, Felice. Mente e linguaggio negli animali. Introduzione alla zoosemiotica cognitiva. Roma: Carocci, 2013.
CORNIPS, Leonie. "Práticas de linguagem nas vacas-leiteiras: corpo, som e ambiente como semiose distribuída". In: Preston, C. J. (ed.). Comunicação Animal Contemporânea. Amsterdam: Meertens Institute, 2024.
MEIJER, Eva. Animal Languages. Nova Iorque: MIT Press, 2018.
SUPER INTERESSANTE. "Fluente em baleiês: Golfinho e outros cetáceos têm sistemas de comunicação complexos". Edição 477, julho 2025, p. 46-49.

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