O Estado de Direito na China Contemporânea: Entre a Tradição Legista e a Codificação Digital do Poder
- gleniosabbad
- 18 de out.
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Glênio S. Guedes (advogado – Brasil)
Resumo
Examina-se um panorama do Estado de Direito na República Popular da China, articulando regime econômico, modelo político-jurídico e transformações tecnológicas recentes. Analisa-se como a tradição jurídica chinesa, as influências ocidentais e a ideologia socialista se combinam na configuração do direito contemporâneo. A partir da noção de “socialismo com características chinesas”, investiga-se como as novas formas de governança, inovação e vigilância moldam o direito. Discute-se ainda a coexistência entre fazhi (法治) e yifa zhiguo (依法治国) como instrumentos de estabilidade e legitimação do Partido Comunista Chinês (PCC). Por fim, defende-se que a China ingressa numa fase de legismo digital, em que a inteligência artificial e o controle de dados reconfiguram o papel do direito como mecanismo de controle e desenvolvimento.
Palavras-chave: Estado de Direito; China; Socialismo com Características Chinesas; Legismo Digital; Direito Comparado; Inovação Tecnológica; Governança Algorítmica.
1. Introdução
O apogeu da China como potência global no século XXI estimula profunda reflexão sobre a natureza de seu sistema jurídico-político. O “modelo chinês” é um terreno de disputas interpretativas: convivem nele o confucionismo ético, o legismo disciplinador, o socialismo planificador e o mercado competitivo. Seu propósito é revelar como essas tensões se articulam na noção de Estado de Direito — não na acepção ocidental de contenção do poder (Rule of Law), mas como sua instrumentalização e forma institucionalizada da autoridade (Rule by Law).
Sustenta-se que a China construiu um modelo híbrido — o “socialismo com características chinesas” — cuja legitimidade repousa em três pilares: desempenho econômico, estabilidade social e primazia do Partido. Essa tríade, que antes se expressava através da planificação industrial, ganha hoje uma face renovada na governança algorítmica e no controle dos fluxos sociais por dados.
2. O Regime Econômico e o Socialismo com Características Chinesas
Desde as reformas iniciadas por Deng Xiaoping (1978), a China experimenta uma transição de economia planificada para um modelo híbrido denominado “economia socialista de mercado”. Nesse arranjo, o Estado assume simultaneamente funções de regulador, planejador e investidor — combinando liberdade seletiva com orientação estratégica.
De acordo com dados oficiais amplamente citados pelo Conselho de Estado, as empresas privadas representam mais de 60 % do PIB e 80 % do emprego urbano na China. Além disso, no início de 2025, o número de empresas privadas registradas (excluindo as entidades autônomas individuais) aproxima-se de 57 milhões. As entidades empresariais privadas (incluindo empresas e autônomos) ultrapassam 180 milhões, representando cerca de 92 % do total de entidades de mercado no país (Administração Estatal para Regulação do Mercado – SAMR).
Outro dado amplamente reconhecido é que, ao longo de quatro décadas, a China ajudou a retirar quase 800 milhões de pessoas da pobreza extrema (linha de US$ 1,90 por dia, PPP) — cifra referida pelo Banco Mundial e respaldada por relatórios oficiais.
Esses dados permitem afirmar que o setor privado se tornou um motor essencial para inovação, emprego e tributação, enquanto o Estado conserva o controle das diretrizes estruturais.
3. O Sistema Jurídico Chinês: Instrumentalidade e Hibridismo
A formação do direito chinês moderno resulta da confluência entre três matrizes:
(i) a tradição confucionista (li, 礼), centrada em moralidade e harmonia social;
(ii) o legado legista (fa, 法), voltado ao poder estatal disciplinador; e
(iii) os modelos ocidentais de direito importados no final da era Qing e no início da República.
O direito é, nesse modelo, eminentemente instrumental — não escudo contra o poder, mas ferramenta de governança. Essa instrumentalidade atravessa quatro fases históricas: a codificação tardia da dinastia Qing; o constitucionalismo republicano (1912–1949); o legalismo político de Mao (1949–1978); e a reconstrução jurídica das reformas de Deng Xiaoping (desde 1978).
Desde 1982, a Constituição é frequentemente emendada para acomodar transformações econômicas e políticas, em vez de limitá-las. Essa flexibilidade normativa ilustra o conceito de constitucionalismo político chinês, no qual o Partido atua como intérprete supremo do direito.
4. Fazhi e Yifa Zhiguo: Entre a Ordem e o Controle
O conceito de Estado de Direito na China, traduzido como fazhi (法治, “governo da lei”), difere substancialmente do Rule of Law ocidental. No Ocidente, a lei limita o poder; na China, a lei exprime o poder e assegura sua execução. O fazhi, desde as formulações de Han Feizi, reflete a ideia de que o direito é um instrumento de governo, e não uma garantia de liberdades individuais.
Após a Revolução Cultural, o Partido Comunista concluiu que a ausência de um sistema jurídico havia sido causa da anarquia e da instabilidade nacional. Desde 1978, o direito foi reabilitado como ferramenta de reconstrução e de previsibilidade estatal. O fazhi moderno mantém essa vocação: institucionaliza a autoridade do Partido e organiza a vida política e econômica sob normas formais, mas sem abrir espaço para a autonomia judicial.
O termo yifa zhiguo (依法治国, “governar o país conforme a lei”), consagrado no IV Plenário do 18º Comitê Central do PCC em 2014, representa a aplicação prática desse princípio. Trata-se de uma política de Estado pela qual o Partido governa através da lei, transformando-a em veículo de legitimidade. A fórmula implica que todas as esferas de poder — inclusive o Judiciário — atuem “de acordo com a lei”, mas sempre sob a direção do Partido.
Na prática, o fazhi e o yifa zhiguo operam conjuntamente em três dimensões principais:
Judicial: tribunais e procuradorias estão vinculados às Comissões de Assuntos Políticos e Jurídicos (Zhengfawei), que asseguram o alinhamento das decisões judiciais às orientações do Partido. O juiz é visto como um executor da ordem normativa, não como um poder independente.
Administrativa: programas como o Sistema de Crédito Social e as redes de vigilância urbana — descritas na reportagem “Big Brother casa por casa” (O Estado de S. Paulo, 2025, pp. 4–5) — exemplificam a transposição do fazhi para o plano tecnológico, instaurando um “legismo digital” que mede, antecipa e regula comportamentos.
Política e cívica: matérias como “Funcionários sob vigilância” (pp. 2–3) e “Em busca de espiões” (pp. 3–4), publicadas na mesma série jornalística, revelam que professores, médicos e servidores públicos foram obrigados a entregar passaportes, registrar atividades pessoais e evitar contatos internacionais. Tais medidas são justificadas como expressão do yifa zhiguo, isto é, da proteção da ordem conforme a lei, reforçando a disciplina política e a lealdade ideológica do funcionalismo público.
Desse modo, fazhi e yifa zhiguo são faces complementares de um mesmo projeto político-jurídico: a legalização do controle. O primeiro fornece o arcabouço normativo que confere racionalidade ao poder; o segundo traduz sua operacionalização política. Ambos convergem para um modelo em que a lei é a forma visível da autoridade, e o Estado de Direito chinês se torna, antes de tudo, um Estado de disciplina institucionalizada.
5. Da Codificação Legal ao Legismo Digital
A inovação tecnológica forja uma transformação da antiga forma legista: big data, vigilância algorítmica e o Sistema de Crédito Social (SCS) são agora os meios pelos quais a ordem é mantida. No dossiê jornalístico do Estadão (2025), menciona-se que Xi Jinping iniciou uma estrutura de vigilância de alta capilaridade, com câmeras e sensores locais, configurando um “Big Brother casa por casa”.
Assim como o legismo clássico utilizava a lei para modelar a conduta, o legismo digital utiliza o algoritmo para calibrar o comportamento. Esse aparato é herdeiro da tradição legista de Han Feizi, mas agora automatizado: o controle social migra da coerção física para a prevenção algorítmica. O legismo digital desloca a centralidade da norma escrita para o dado em tempo real, e o direito converte-se em infraestrutura de monitoramento.
6. O Futuro: Inovação, Direito e Legitimação
O desafio coloca-se em conciliar inovação radical (a “criação do zero”) com o controle político. O direito pode assumir um papel de estrutura regulatória reflexiva nas novas fronteiras da inteligência artificial, da governança de dados e do trabalho digital. Mas, enquanto o Partido mantiver o monopólio da interpretação constitucional, o fazhi continuará sendo uma legalidade sem autonomia judicial — isto é, sem a verdade judicial autônoma capaz de limitar o poder político.
7. Conclusão
O Estado de Direito chinês é uma construção dinâmica, paradoxal e profundamente híbrida: entre moral confucionista e disciplina legista; entre socialismo e mercado; entre estabilidade e criatividade tecnológica. O “modelo chinês” é, em essência, um projeto civilizacional que combina direito, tecnologia e planejamento.
O caso chinês demonstra que o Estado de Direito pode ser menos uma categoria jurídica e mais uma tecnologia de governo. O futuro do fazhi dependerá da capacidade política de permitir a experimentação criativa sem provocar rupturas que comprometam a ordem.
Referências
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