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O Cuidado como Princípio Jurídico e Médico: fundamentos epistemológicos e ético-transdisciplinares

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    gleniosabbad
  • 1 de nov.
  • 5 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )


1. Introdução


O cuidado constitui o eixo invisível que une a ciência médica, a prática jurídica e a ética da responsabilidade. Desde a medicina hipocrática, cuidar significa compreender o outro em sua fragilidade e agir de forma a preservar a vida em sua plenitude. Na contemporaneidade, marcada pela técnica e pela velocidade, o cuidado ressurge como princípio que transcende disciplinas e reordena a própria racionalidade prática do humano.

A medicina e o direito, quando compreendidos em sua essência ética, revelam-se não como técnicas de poder, mas como formas de escuta e de resposta à vulnerabilidade. O raciocínio médico, tanto quanto o jurídico, é um exercício de interpretação prudente, que deve integrar o saber científico à compreensão existencial do outro.¹


¹ MONTE, Fernando Queiroz. As bases do raciocínio médico. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009.


2. O cuidado como valor de origem ética e fundamento da responsabilidade


O dever de cuidado não se origina na lei escrita nem na técnica profissional, mas na própria experiência da alteridade. Toda relação humana pressupõe a presença de um outro, e essa presença funda a obrigação moral de agir em favor da vida. A ética, nesse sentido, antecede o direito e a medicina: antes de haver norma, há responsabilidade.

O cuidar expressa a passagem do “eu” ao “outro” — é o gesto pelo qual o ser reconhece que sua existência depende da relação. Essa ideia de interdependência estrutura a bioética contemporânea, na qual o princípio de respeito à pessoa é inseparável da dignidade e da solidariedade humanas.²

No plano filosófico, o cuidado é visto como atitude de atenção e desvelo diante do outro, uma forma de sabedoria prática (phronesis) que equilibra conhecimento e sensibilidade. Assim, a ética do cuidado não é sentimentalismo, mas razão encarnada: traduz-se em escolhas prudentes, sustentadas por empatia e consciência das consequências.³


² CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. A alteridade como causa primeira da bioética. Revista Bioethikos, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 402-411, 2011.³ BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela Terra. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.


3. Medicina, direito e o paradigma do “nós”


O desenvolvimento histórico da medicina revela um movimento que vai da magia à técnica, e desta à hermenêutica. O modelo científico-positivista, que reduziu o corpo a objeto e o paciente a caso, cede espaço a uma racionalidade integradora, na qual o homem volta a ser o centro da prática clínica.⁴

Esse mesmo deslocamento ocorre no direito: o formalismo normativo, herdeiro do positivismo jurídico, é gradualmente substituído por uma hermenêutica voltada à dignidade da pessoa humana. O cuidado, nesse contexto, transforma-se em valor jurídico, fundamento das relações que envolvem vulnerabilidade — sejam elas familiares, médicas ou sociais.⁵

Nos tribunais superiores, o dever de cuidado tem sido reconhecido como dever jurídico positivo, cuja violação gera responsabilidade civil. Esse reconhecimento reflete uma mudança paradigmática: o Estado e os particulares não apenas devem abster-se de causar dano, mas têm o dever ativo de proteger, assistir e zelar pela integridade do outro.⁶

Medicina e direito, portanto, compartilham a mesma estrutura ética. Ambos se fundam na vulnerabilidade humana e na necessidade de responder ao sofrimento alheio. No hospital e no tribunal, a técnica só é justa quando iluminada pela compaixão racional e pela prudência ética.


⁴ FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019.⁵ COLTRO, Antônio Carlos Mathias. O Direito, a Medicina e o Cuidado. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 100, n. 910, p. 63-78, 2011.⁶ BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial n.º 1.159.242/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 24 abr. 2012.


4. A alteridade como fundamento ontológico do dever de cuidado


O cuidado encontra seu alicerce filosófico na alteridade: a consciência de que o outro existe antes de qualquer definição normativa. A bioética contemporânea reconhece que a dignidade humana se realiza na relação — não há ética do indivíduo isolado, mas do entre.

Sob essa perspectiva, a alteridade atua como norma fundamental não escrita, implícita em todas as relações sociais e jurídicas. Ela antecede o contrato, o código e o julgamento. É a condição de possibilidade do dever de cuidado.

Assim, cuidar é o modo de responder à existência do outro. A responsabilidade não decorre da coação externa, mas da compreensão de que toda vida humana depende de outra. O médico que cura, o juiz que decide, o cidadão que protege — todos participam da mesma ética relacional.

A alteridade, portanto, não é um conceito abstrato: é uma experiência concreta de co-humanidade. Ela obriga o sujeito a agir, e sua força normativa é justamente a consciência de que não agir também é escolha moral. Nesse sentido, o dever de cuidado é a expressão jurídica da alteridade.⁷


⁷ CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. A alteridade como causa primeira da bioética. Revista Bioethikos, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 402-411, 2011; LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito: ensaio sobre a exterioridade. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.


5. O imperativo da responsabilidade e a transdisciplinaridade do cuidado


O avanço tecnológico e a fragmentação dos saberes exigem uma ética que una ciência e humanidade. O cuidado cumpre esse papel ao funcionar como princípio transdisciplinar, ligando o biológico ao jurídico, o psicológico ao social, o individual ao coletivo.

Na medicina, ele impede que a técnica substitua a escuta. No direito, evita que a norma se transforme em violência formal. Na filosofia, recorda que todo conhecimento deve servir à vida.

O dever de cuidado, nessa acepção, realiza o imperativo da responsabilidade: agir de modo que o efeito das ações preserve a continuidade da vida humana na Terra.⁸ O cuidado é o critério de validade ética de toda prática científica, política ou jurídica. Ele é o ponto de interseção entre prudência, solidariedade e justiça.


⁸ JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Contraponto, 2006.


6. Conclusão


O cuidado é o fio condutor que articula as dimensões médica, jurídica e ética do humano. Ele se inicia na alteridade — a consciência do outro —, manifesta-se na responsabilidade — o agir em favor do outro —, e culmina na justiça — o reconhecimento do outro como igual.

Em tempos de racionalidade fragmentada, o cuidado se revela como episteme de fronteira: síntese entre o saber técnico e a sabedoria existencial. Na medicina, traduz-se em atenção integral ao paciente; no direito, em tutela da dignidade; na ética, em consciência solidária.

Cuidar, afinal, é reconhecer-se no outro — e é nesse gesto que a humanidade reencontra sua medida.


Referências bibliográficas


BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela Terra. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial n.º 1.159.242/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Brasília, DF, 24 abr. 2012.

CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. A alteridade como causa primeira da bioética. Revista Bioethikos, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 402-411, 2011.

COLTRO, Antônio Carlos Mathias. O Direito, a Medicina e o Cuidado. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 100, n. 910, p. 63-78, 2011.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Contraponto, 2006.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito: ensaio sobre a exterioridade. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.

MONTE, Fernando Queiroz. As bases do raciocínio médico. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009.


 
 
 

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