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Humildade Epistêmica: Um Conceito Útil aos Advogados

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 19 de out.
  • 4 min de leitura

Por Glênio S. Guedes (advogado)


“Não sei responder sobre a utilidade da cultura, mas sei que a ignorância serve a quem deseja apatia.”
Leandro Karnal, “Não sei responder sobre a utilidade da cultura, mas sei que a ignorância serve a quem deseja apatia”, O Estado de S. Paulo, 19 out. 2025
“Sabemos dizer: Cícero diz assim, eis os costumes de Platão; são as próprias palavras de Aristóteles. Mas nós mesmos, o que dizemos de nosso?”
Montaigne, Ensaios, Livro I, cap. 25

No Direito, há uma tentação antiga e persistente: confundir erudição com sabedoria. O acúmulo de citações, a segurança das fórmulas e a confiança nas autoridades costumam ser tomados como sinais de competência. No entanto, o educador canadense Normand Baillargeon, em Liliane est au lycée — Est-il indispensable d’être cultivé? (De que serve ser culto?, edição brasileira da Apicuri, 2015), recorda-nos que a verdadeira cultura — e, portanto, a verdadeira formação jurídica — exige algo mais: a humildade epistêmica, isto é, o reconhecimento de que todo conhecimento é limitado, provisório e passível de revisão.

A frase de Leandro Karnal, que abre este texto, ilumina o mesmo princípio em linguagem simples e precisa. “A ignorância serve a quem deseja apatia” é uma síntese poderosa do que Baillargeon chama de “autodefesa intelectual”. Se a cultura liberta, como diz Karnal, a ausência dela produz servidão. E é dessa libertação do pensamento que depende a lucidez do Direito.


1. Saber duvidar, para compreender melhor


A humildade epistêmica implica reconhecer que ninguém domina o todo. O advogado que estuda um caso complexo, o juiz que interpreta uma norma ambígua ou o pesquisador que revisita um conceito devem aceitar que o sentido jurídico se constrói no diálogo, não na imposição.

Em um tempo em que o discurso público se radicaliza, essa atitude crítica protege o jurista contra o dogmatismo. Como ensinou Baillargeon, “a cultura não é ornamento, mas uma forma de liberdade”. No Direito, essa liberdade manifesta-se como disposição de ouvir o outro lado, reconsiderar argumentos e buscar fundamentos mais sólidos para decidir ou convencer.


2. Contra a “cretinização jurídica”


Baillargeon denuncia a “cretinização das massas” promovida pela mídia; e, em tom semelhante, Karnal adverte que “a ignorância serve muito bem a quem deseja pessoas apáticas e submissas ao púlpito ou ao palanque”. A rotina dos tribunais, as petições padronizadas e as decisões reproduzidas por modelos automáticos criam um risco análogo: transformar o profissional do Direito em mero repetidor de fórmulas.

A humildade epistêmica funciona aqui como antídoto cívico e intelectual. Lembra-nos que o Direito não é depósito de textos normativos, mas campo de interpretações e valores. O advogado que reconhece seus limites está mais apto a aprender, dialogar e inovar; o que se crê infalível cristaliza-se em jargões e repete o que “sempre se fez”.


3. Inteligência Artificial e o novo desafio do saber


A emergência da Inteligência Artificial tornou essa virtude ainda mais necessária. Ferramentas jurídicas que prometem resumir acórdãos, redigir petições ou sugerir estratégias em segundos podem reforçar a ilusão de que pensar é dispensável. Mas, como advertiria Montaigne, corremos o risco de “encher a memória e esvaziar a consciência”.

A IA reproduz padrões — inclusive vieses jurídicos, de classe e de gênero — e não distingue justiça de eficiência. Cabe ao profissional do Direito o papel crítico: compreender os limites dessas ferramentas, examinar as fontes e garantir que a decisão humana não seja substituída por um algoritmo estatístico. Nesse cenário, a humildade epistêmica deixa de ser virtude teórica e torna-se dever ético: reconhecer que a inteligência humana é falível, mas também insubstituível.


4. Um gesto de cidadania jurídica


A humildade epistêmica é, em última instância, uma forma moderna de prudência, aquela virtude que o Direito Romano celebrava como mãe das virtudes. Ela impede que a vaidade técnica destrua a escuta, que a erudição suplante a empatia e que o formalismo substitua a justiça.

Ser culto, como lembra Baillargeon, não é citar Aristóteles, mas compreender o mundo com ele. Para o advogado, é entender o cliente e o contexto, não apenas a letra da lei. Para o juiz, é duvidar antes de decidir.Para o estudante, é perguntar antes de repetir.

Em tempos de opiniões instantâneas e algoritmos oniscientes, a humildade epistêmica é mais que uma virtude filosófica: é ato de resistência democrática. Ela devolve à profissão jurídica o que lhe é essencial — o senso de limite e a disposição para compreender antes de julgar.


Referências bibliográficas


BAILLARGEON, Normand. Liliane est au lycée — Est-il indispensable d’être cultivé? Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. 1. ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2015.

KARNAL, Leandro. “Não sei responder sobre a utilidade da cultura, mas sei que a ignorância serve a quem deseja apatia”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 out. 2025. Coluna semanal.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

DEWEY, John. The Public and Its Problems. New York: Holt, 1927.


 
 
 

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