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Filosofia e Medicina: a ontologia da cura

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    gleniosabbad
  • 22 de out.
  • 6 min de leitura

Como o pensamento e o corpo buscam juntos o sentido do sofrimento humano


Por Glênio S Guedes ( advogado )

Em homenagem aos meus amigos médicos/filósofos


“No sé si logra que Filosofía y Medicina vuelvan a enamorarse.

Creo que todos nos conformaríamos con que al menos sean buenos amigos.”


— Javier Sádaba, prólogo a Filosofía y Medicina. Una historia de amor.


1. Introdução — Quando a dor pensa


Desde os primórdios da cultura ocidental, a medicina e a filosofia partilham um mesmo território: o da fragilidade humana. Ambas nascem da experiência da dor e da necessidade de compreendê-la.

O médico observa e alivia; o filósofo interroga e interpreta. Um cura o corpo ferido, o outro tenta curar o sentido que se rompe com a doença.

Na Grécia antiga, essa união era evidente. Alcméon de Crotona, Empédocles e Hipócrates tratavam o corpo como um microcosmo do cosmos; Platão e Aristóteles viam na alma o princípio ordenador da saúde.

O que o médico chamava de desequilíbrio dos humores, o filósofo chamava de desarmonia do ser.

A linguagem era uma só: harmonia, ritmo, proporção.

Com o tempo, porém, o laço se rompeu. A ciência fechou-se na precisão técnica; a filosofia, na abstração especulativa.

O resultado é um duplo empobrecimento: o médico que esquece de pensar e o filósofo que ignora o corpo.

Hoje, mais do que nunca, é urgente reconciliar esses saberes — não para confundi-los, mas para reencontrar o humano que ambos buscam servir.


2. O corpo que pensa e a alma que adoece


A experiência da doença é, antes de tudo, uma experiência de pensamento.

O corpo doente obriga o homem a refletir sobre o tempo, a dependência e o limite.Por isso, muitos dos grandes filósofos foram também doentes notáveis: Sócrates com suas crises, Pascal com suas visões febris, Nietzsche com suas dores, Wittgenstein com sua obsessão pela clareza.

Em todos, o sofrimento não destruiu o pensamento — o fecundou.

A doença, ao suspender a rotina, produz lucidez: o corpo se torna intérprete da alma.

E o médico, quando percebe isso, torna-se também filósofo — alguém que, ao auscultar o sintoma, tenta compreender o sentido da vida que nele se exprime.

A medicina contemporânea, ao redescobrir o valor da escuta, volta a aproximar-se da filosofia.

Escutar o paciente é reconhecer que o corpo fala, e que toda dor é uma forma de linguagem.


3. A filosofia como medicina da alma


O antigo ideal hipocrático não separava o saber do viver.

Cuidar do corpo era cuidar da alma; e o filósofo, em Platão e nos estoicos, assumia funções médicas.

A filosofia era chamada de therapeía tês psychês — terapia da alma.

Essa ideia renasce quando se entende que pensar é um modo de curar.

Ao ordenar o pensamento, o homem reordena a existência.

A medicina, por sua vez, não se limita a restabelecer funções: ela também restitui sentido.

Um médico que trata apenas o corpo cura, mas não liberta.

Um filósofo que ignora o sofrimento pensa, mas não toca a vida.

Entre ambos, há um espaço de encontro — o mesmo onde nasce a ética.


4. A ontologia da cura


Pensar a doença é pensar o ser.

A filosofia da medicina — de Hipócrates a Canguilhem — ensina que o patológico não é um erro, mas uma variação criativa da vida.

O corpo doente não é um corpo fracassado: é um corpo em busca de nova forma.

A saúde, como a sabedoria, não é estado fixo, mas movimento — uma invenção contínua de equilíbrio.

O ser vivo é normativo: cria suas próprias leis, adapta-se ao que o fere, inventa saídas.

A febre, a dor, o delírio são tentativas da vida de se manter viva.

Essa capacidade de reconfigurar normas é a essência da saúde e, por extensão, da própria consciência.

O espírito que pensa faz o mesmo que o corpo que cicatriza: reorganiza-se.

No entanto, há doenças que não se curam com remédios.

São doenças da alma — patologias do ser — que exigem outra clínica: a do pensamento.


5. As doenças do espírito — uma anatomia do século XXI


O filósofo romeno Constantin Noica descreveu seis “doenças do espírito contemporâneo”.

Cada uma é uma forma de desarmonia entre três dimensões essenciais do ser: o individual, o universal e o determinado.

Lidas hoje, essas doenças soam proféticas: antecipam os males do século XXI — a perda de sentido, o excesso de informação, a dissolução da identidade e o colapso das fronteiras entre o real e o virtual.


1. Acatolia — a cegueira do universal


O homem acatólico vive preso ao fragmento.

Sabe muito, mas não compreende.

É o especialista que domina dados, mas perdeu o sentido do todo; o leitor de telas que enxerga pixels, mas não imagens.

Vivemos cercados de informação, mas desprovidos de sabedoria.

A acatolia é a doença do excesso de particular, da incapacidade de elevar-se à ideia.

Na medicina, manifesta-se no tecnicismo: o profissional que conhece protocolos, mas não escuta o sofrimento.

A cura? Reaprender a contemplar o humano em sua totalidade.


2. Atodecia — a dissolução da individualidade


O atodético perdeu o “eu”.

Vive segundo o reflexo das massas, repete o que escuta, busca aprovação.

É o sujeito que se define por rótulos: “sou ansioso”, “sou bipolar”, “sou perfil tal”.

Nas redes sociais, a atodecia se disfarça de visibilidade, mas é anonimato.

A cura é recuperar a singularidade, reconhecer-se como “este ser aqui” — não um dado, mas uma história.


3. Ahorecia — a perda de lugar


O homem ahorético vive desenraizado.

Viaja sem destino, trabalha em qualquer lugar, pertence a nenhum.

É o cidadão global, mas órfão simbólico.

Essa doença produz ansiedade e solidão.

É a febre do deslocamento permanente.

A cura não está em voltar ao passado, mas em reaprender a habitar — dar sentido ao espaço, criar vínculos, enraizar-se interiormente.


4. Catolite — o esmagamento pelo universal


A catolite é a doença da obediência.

O indivíduo se submete a sistemas impessoais — o mercado, a máquina, o algoritmo — e renuncia à consciência.

No hospital, é o médico que segue o protocolo mesmo quando ele desumaniza.

Na política, é o cidadão que repete “ordens são ordens”.

A cura está em restaurar o juízo ético: saber dizer “não” quando o sistema esquece o humano.


5. Todetite — a inflamação do eu


O todético é o sujeito inflamado de si mesmo.

A doença do narcisismo digital, da opinião absoluta, da selfie metafísica.

O mundo se torna espelho, e o outro, ruído.

O pensamento se reduz à autopromoção.

A cura é a humildade: reaprender a dialogar, reconhecer-se parte, não centro.


6. Horetite — a confusão das fronteiras


A horetite é o colapso das distinções.

Nada mais tem hierarquia: o essencial e o trivial se confundem.

Vivemos numa era horetítica — saturada de informação, carente de critério.

O indivíduo flutua entre imagens, estímulos e opiniões, sem conseguir discernir o real.

A cura é o discernimento: o resgate da medida, do limite e da proporção — virtudes que, desde Aristóteles, são a base da saúde e da sabedoria.


6. Doenças do ser e doenças do corpo


Essas seis doenças são espelhos simbólicos das enfermidades físicas.

Acatolia é a cegueira técnica; atodecia, a apatia vital; ahorecia, o desequilíbrio do sistema nervoso; catolite, a hipertensão da norma; todetite, a febre do ego; horetite, a confusão metabólica da era digital.

Em todas, o que se rompe é a homeostase do sentido — o equilíbrio entre o eu, o outro e o mundo.

A cura, seja pela medicina ou pela filosofia, consiste em restaurar essa harmonia perdida.

O médico cura quando devolve ao paciente a capacidade de narrar-se.

O filósofo cura quando devolve ao homem o poder de compreender-se.

Ambos restituem a normatividade da vida — o ritmo vital da existência.


7. Conclusão — Entre o bisturi e a palavra


A medicina e a filosofia são dois modos de uma mesma arte: a arte de compreender o humano.

O médico opera o corpo; o filósofo, a linguagem.

Mas ambos buscam o mesmo resultado: sentido.

Quando a técnica se afasta do pensamento, ela se torna máquina.

Quando o pensamento ignora o corpo, ele se torna vazio.

Entre o bisturi e a palavra existe uma ponte invisível — a ponte da escuta.

Escutar o corpo é filosofar; filosofar é escutar o que o corpo tenta dizer.

Talvez — como escreveu Javier Sádaba — a Filosofia e a Medicina nunca voltem a se enamorar.

Mas se voltarem a conversar, o mundo já estará um pouco mais curado.


(Referências: Benjamín Herreros Ruiz-Valdepeñas, Filosofía y Medicina. Una historia de amor; Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique; Constantin Noica, As seis doenças do espírito contemporâneo; Ivan Frias, Doença do corpo, doença da alma; Leonidas Hegenberg, Doença: um estudo filosófico.)

 
 
 

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