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Docta Bononia e o Cemitério dos Glossadores

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    gleniosabbad
  • 8 de nov.
  • 6 min de leitura

Quando o saber se fez cidade e o Direito encontrou sua eternidade


Por Glênio S Guedes ( advogado )


“Pietro, padre del mondo; Bologna, madre delle leggi.”— Selo comunal do século XIII

1. A cidade que se fez sábia


Chamam-na Docta Bononia — a Erudita Bolonha. Nenhuma cidade medieval expressou de modo tão visível a fusão entre inteligência e espaço urbano. Desde o século XIII, os pórticos acolhiam estudantes de toda a Europa; sob suas arcadas, lia-se Justiniano, comentava-se Aristóteles, disputavam-se teses sobre o bem e o justo.

A Paz de Constança (1183), que concedeu autonomia às comunas do norte da Itália, libertou Bolonha do jugo imperial. Foi nesse clima de liberdade que a cidade descobriu sua verdadeira vocação: fazer do saber uma forma de governo. A comuna criou leis de proteção aos estudantes, concedeu-lhes privilégios fiscais e jurídicos, e começou a organizar, pela primeira vez na história, uma república do conhecimento.

Os estudantes estrangeiros — franceses, ingleses, espanhóis, húngaros, poloneses — agrupavam-se em associações de ajuda mútua chamadas Nationes, que logo se fundiram em Universitates. Reuniam-se nas basílicas: os Citramontani (italianos não bolonheses) em San Domenico, os Ultramontani (vindos de além dos Alpes) em San Procolo. Ali elegiam reitores, aprovavam estatutos, julgavam litígios internos e ditavam as normas da vida acadêmica. Nascia, assim, a palavra universidade, que designava, antes de tudo, uma comunidade autônoma de estudantes e mestres — uma micro-república dentro da república comunal.


2. O método e o rito do saber


As lições seguiam um método fixo: a Lectura, em que o mestre lia e comentava um texto de Direito; as Repetitiones, em que os alunos retomavam a matéria; e as Quaestiones disputatae, debates públicos nos quais se testava a habilidade argumentativa. A pedagogia bolonhesa era, portanto, um exercício de racionalidade discursiva — a origem do método jurídico-hermenêutico que moldaria toda a tradição ocidental.

No início, o título de doutor era informal, concedido pelo próprio mestre. Mas em 1219 o Papa Honório III centralizou o poder de outorga: apenas o arcediago da catedral poderia conceder a Licentia docendi — o direito de ensinar. Com o tempo, o título tornou-se uma cerimônia grandiosa: o candidato era examinado por uma banca na sacristia da Catedral de São Pedro, e depois, diante do povo e do clero, recebia o anel, o barrete e o livro. Em 1291, o Papa Nicolau IV declarou essa licença universalmente válida, permitindo que os doutores bolonheses ensinassem em toda a cristandade. Foi então que nasceu o epíteto que a cidade conservaria para sempre: La Dotta, a Sábia.


3. Accursio: o arquiteto da Erudição


Entre os mestres que deram forma a essa sabedoria, nenhum brilhou tanto quanto Accursio (Accursius, 1184–1263). Florentino de nascimento, adotou Bolonha como pátria intelectual. Com sua monumental Magna Glossa, reuniu noventa e sete mil comentários ao Corpus Iuris Civilis — condensando dois séculos de interpretação em uma única obra.

O texto da Università di Bologna lembra que a Magna Glossa foi durante seis séculos considerada a interpretação canônica do Direito Romano. Accursio lecionava ao lado de Azzone, reformou o ensino jurídico e transformou o estudo do texto em ciência metódica. Seu prestígio foi tão grande que construiu um palácio na Piazza Maggiore, hoje o Palazzo d’Accursio, sede do governo municipal. Assim, a casa do jurista tornou-se a casa da cidade — o poder político erguido sobre o fundamento do saber.

Após sua morte, foi sepultado atrás da abside de San Francesco, numa arca encomendada por seu filho Francesco Accursio. Seu túmulo fecha o círculo das Tombe dei Glossatori e simboliza o elo entre livro e pedra, texto e cidade.


4. Rolandino de’ Passaggeri: o mestre que libertou e ensinou


Outro nome ilumina a constelação bolonhesa: Rolandino de’ Passaggeri (1215 – 1300). Segundo a própria Universidade, foi notário, político e professor da arte notarial, fundador de uma escola e autor da Summa totius artis notariae, obra fundamental da prática jurídica medieval. Signatário do Liber Paradisus (1257), Rolandino fez de Bolonha a primeira cidade do mundo a libertar seus servos, inscrevendo na lei o princípio da dignidade civil. Redigiu os Estatutos Municipais, apoiou o governo popular e defendeu a independência comunal frente ao papado e ao império.

Sua tumba, erguida entre 1300 e 1306 pela Sociedade dos Notários, ergue-se no átrio de San Domenico. É o primeiro monumento europeu a retratar o defunto ensinando, cercado de discípulos. De um lado, o professor em cátedra — gesto de vida; do outro, o corpo sereno — gesto de eternidade. A cidade, ao esculpir essa dupla imagem, transformou o ensino em ícone e o saber em redenção.


5. O Cemitério dos Glossadores


Os túmulos de Accursio, Rolandino, Odofredo Denari, Egidio Foscherari e Rolandino de’ Romanzi, situados nas praças de San Domenico e San Francesco, formam um conjunto único na Europa. Segundo Simona Zagni, são “um museu das glórias universitárias”: altos basamentos, celas funerárias e coberturas piramidais que transformam o mestre em monumento.

Essas tumbas marcam o ponto em que o ensino deixa de ser prática efêmera e se torna instituição simbólica. Cada sarcófago é uma página petrificada da Glossa Magna: a palavra feita arquitetura.

A iconografia revela a tensão medieval entre pietas e glória. Os doutores sabiam que seu poder era terreno, e buscavam na arte funerária uma forma de penitência. Seus testamentos deixavam à Igreja parte das riquezas obtidas; mas seus túmulos, erguidos pela cidade, perpetuavam-nos como patriotas do saber. A comunhão entre fé e razão se materializa nesses mausoléus — ao mesmo tempo altares e cátedras.


6. O culto cívico dos doutores


No século XIII, Bolonha compreendeu que o estudo não era apenas profissão, mas virtude política. O Studium tornou-se parte da identidade comunal. Os reitores estudantis participavam das assembleias municipais; os professores, agora organizados no Colégio dos Doutores, eram consultores das leis.

O título de doutor — anel, barrete e livro — equivalia a uma investidura pública. Os bolonheses celebravam seus mestres como outras cidades celebravam santos. Os juristas e notários eram vistos como benfeitores da cidade, e suas tumbas, como monumentos patrióticos.

A própria Universidade reconhece:


“Atrás da abside de San Francesco e na Piazza San Domenico, os túmulos dos glossadores ainda transmitem a memória dos grandes mestres, comemorados publicamente de uma forma que nem mesmo os soberanos recebiam.”

Bolonha fizera do saber o seu culto, e dos professores, seus heróis cívicos.


7. A Docta Bononia: cidade, texto e eternidade


No triângulo formado por Comuna, Universitas e Cimitero, a Docta Bononia encontrou sua forma perfeita:

Elemento

Representação

Valor simbólico

Comuna (autonomia civil)

A cidade livre após 1183

O saber como fundamento da república

Universitas (autogestão estudantil e colegial)

A república dos estudantes e mestres

A ciência como forma de governo

Cimitero dei Glossatori (memória monumental)

Os túmulos junto a San Francesco e San Domenico

O saber como eternidade cívica


A Docta Bononia é, portanto, o ponto de convergência entre razão, liberdade e memória. Ali o Direito Romano renasceu; dali irradiou-se a cultura jurídica da Europa. E é nesse solo que repousam, lado a lado, os fundadores da modernidade intelectual ocidental.


8. A pátria dos sábios


Em Roma dormem os santos. Em Florença, os artistas. Em Bolonha, os doutores.

Sob as abóbadas de San Francesco e San Domenico, descansam os homens que transformaram o comentário em ciência e a ciência em cidadania. O Cimitero dei Glossatori é, ao mesmo tempo, cemitério e cátedra, templo e biblioteca. Cada arco é uma lição de pedra sobre a dignidade do intelecto.

Por isso, ao caminhar por suas praças, sente-se ainda a respiração de uma cidade que pensava em voz alta. A Docta Bononia não é apenas um epíteto: é um modo de ser — a cidade que ensinou o mundo a pensar.


Referências


  • ZAGNI, Simona. “Le tombe dei glossatori.” Zeta Magazine – Rivista di Tanatologia, 2022.

  • GRANDI, R. I monumenti dei dottori e la scultura a Bologna (1267–1348). Bologna, 1982.

  • UNIVERSITÀ DI BOLOGNA. “Accursio.” La nostra storia / Persone famose e studenti.

  • UNIVERSITÀ DI BOLOGNA. “Rolandino De’ Passaggeri.” La nostra storia / Persone famose e studenti.



 
 
 

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