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Do Fato ao Dado: o Direito em Estado Quântico diante da Revolução do Mercado Financeiro e da CriptoLaw

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    gleniosabbad
  • 12 de out.
  • 7 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )

Ex facto oritur ius ou ex dato oritur ius?
“O mercado financeiro tem sido palco de inovações que desafiaram o direito, como os títulos de crédito, os valores mobiliários, os contratos derivativos, os fundos de investimento. Desde a criação do Bitcoin, há muitas discussões jurídicas relevantes sobre criptativos, exchanges nas quais são negociados, novos paradigmas para a prestação de serviços financeiros e perplexidades ainda em aberto.”(COSTA, Isac S. da; PRADO, Viviane M.; GRUPENMACHER, Giovana T., orgs. CryptoLaw – Inovação, Direito e Desenvolvimento, São Paulo: Almedina, 2020, p. 15.)

1. Da era dos fatos à era dos dados


Durante séculos, o Direito edificou-se sobre a solidez do fato — o acontecimento humano dotado de relevância jurídica. Hoje, porém, vivemos a ascensão do dado — o registro digital, o algoritmo, o bloco criptográfico que mede e interpreta a realidade antes mesmo de ela se consumar. Assiste-se, assim, à transição de um Direito ex facto para um Direito ex dato.

A normatividade passa a operar pela lógica da informação: fluida, instantânea, distribuída. O dado deixa de ser mero meio de prova e passa a ser operador jurídico em si mesmo — elemento ativo de geração de direitos, deveres e riscos. A interpretação jurídica desloca-se da materialidade do fato para a inteligibilidade do dado.


2. O mercado financeiro como laboratório da incerteza


O mercado financeiro tornou-se o grande laboratório da normatividade contemporânea. Cada token, stablecoin ou contrato DeFi constitui uma hipótese jurídica viva, testada pela interação entre investidores, algoritmos e reguladores.

A revolução das fintechs e das finanças descentralizadas alterou a própria ontologia da confiança: esta, antes monopólio do Estado, é hoje distribuída em redes verificáveis e auditáveis.

Rudá Pellini, em O Futuro do Dinheiro, prevê que “o dinheiro circulará pela internet com a mesma naturalidade de uma mensagem”. Essa simplicidade aparente encobre uma complexidade informacional inédita: cada transação gera rastros de dados, e cada dado retroalimenta decisões automatizadas — inclusive de natureza jurídica.

O aforismo ex dato oritur ius deixa, portanto, de ser figura de linguagem e passa a expressar uma realidade normativa emergente: o Direito nasce das interações entre tecnologia, economia e regulação.


3. O Direito em estado quântico


Os conceitos da física quântica, aqui utilizados como instrumentos heurísticos, oferecem metáforas fecundas para compreender o Direito atual. O sistema jurídico assemelha-se a um campo de probabilidades, no qual cada norma representa uma onda de sentido e cada decisão, o colapso de uma dessas possibilidades interpretativas.

Bruno Felipe de Oliveira e Miranda, ao propor uma “dogmática da nesciência”, sugere que a incerteza é constitutiva do raciocínio jurídico — não um erro, mas um dado estrutural da linguagem e da interpretação. Na mesma linha, Humberto Ávila demonstra, em sua Teoria da Indeterminação da Linguagem, que o texto normativo não fixa sentidos de modo rígido, mas delimita zonas de coerência argumentativa dentro das quais se movem as decisões possíveis.

Assim, a incerteza não é inimiga do Direito, mas o meio pelo qual o Direito se realiza. O ato interpretativo é, como na física quântica, um experimento: ao observar o sistema, o intérprete o transforma.


4. O jurista quântico: intérprete e engenheiro


Desse novo paradigma emerge o jurista quântico — aquele que habita a fronteira entre o jurídico e o tecnológico. Sua função não é eliminar o indeterminado, mas mapeá-lo; não impor certeza, mas construir coerência entre linguagens distintas: a da norma e a do código.

O contrato inteligente não extingue a função do advogado; obriga-o a evoluir. O profissional da CriptoLaw deve compreender simultaneamente os princípios constitucionais e os protocolos de validação de redes. É um hermeneuta híbrido: parte jurista, parte engenheiro de sistemas. Sua autoridade decorre da capacidade de traduzir complexidade em legitimidade.


5. A biografia do Direito


Fábio Ulhoa Coelho, em Uma Biografia Não Autorizada do Direito, descreve o Direito como um ser histórico, em constante tentativa de compreender e controlar a própria narrativa. Embora não recorra a metáforas quânticas, sua reflexão converge com a ideia de que o Direito é organismo vivo, mutável e autorreferente. Cada decisão modifica o campo normativo que a produziu. O conflito não é patologia, mas energia vital do sistema jurídico.

Essa visão aproxima o pensamento jurídico da teoria dos sistemas complexos, na qual o Direito é visto como uma rede de interações autopoéticas e adaptativas.


5-A. O mercado financeiro em sentido amplo: arquitetura e metamorfose


1. Conceituação doutrinária


Em sentido estrito, o mercado financeiro abrange as instituições de intermediação monetária e creditícia, sob a supervisão do Banco Central do Brasil (Lei nº 4.595/1964).

Em sentido amplo, todavia, compreende todos os sistemas de mobilização, alocação e transferência de recursos financeiros, internos e internacionais.

Segundo a doutrina de Eduardo Fortuna, Marcelo Godke Veiga, Isac Costa, Arnaldo Rizzardo e Armando Castelar Pinheiro, esse mercado lato sensu é formado por sete segmentos interdependentes:


  1. Mercado bancário (ou monetário) – responsável pela intermediação de crédito e liquidez, atualmente revolucionado pelo open finance (Resolução Conjunta CMN/BACEN nº 1/2020), pelo Pix e pelas fintechs;

  2. Mercado de capitais – emissão e negociação de valores mobiliários, sob regulação da CVM;

  3. Mercado securitário – seguro, resseguro e previdência, sob supervisão da SUSEP;

  4. Mercado cambial – disciplinado pela Lei nº 14.286/2021, abrange operações internacionais de câmbio e pagamentos;

  5. Mercados de crédito rural e imobiliário – regulados por legislação própria (Leis nº 4.829/1965 e nº 4.380/1964);

  6. Mercado de derivativos e commodities financeiras – ambiente de proteção e especulação de preços;

  7. Mercado de criptoativos e finanças descentralizadas (DeFi) – transversal aos demais, regulado pela Lei nº 14.478/2022 e pela Resolução BCB nº 260/2022.


Esses segmentos compõem uma estrutura coordenada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), com supervisão técnica do Banco Central, da CVM e da SUSEP, em modelo de regulação cooperativa. O resultado é um sistema de governança em rede, progressivamente orientado à interoperabilidade regulatória.


2. Os núcleos de transformação


Os três segmentos clássicos — bancário, de capitais e securitário — são o núcleo da metamorfose em curso:


  • No sistema bancário, a intermediação humana cede lugar à intermediação algorítmica; a confiança, antes pessoal, torna-se código. O Direito bancário passa a lidar com transparência algorítmica, responsabilidade por falhas de IA e tutela de dados financeiros.

  • No mercado de capitais, a tokenização converte ações e debêntures em ativos programáveis. A CVM adota modelos de supervisão adaptativa (regtechs e suptechs), exigindo nova hermenêutica da responsabilidade dos emissores.

  • No mercado securitário, o risco é personalizado por algoritmos de aprendizado de máquina. O contrato de seguro, antes aleatório, torna-se adaptativo, redefinindo conceitos como boa-fé e função social.


3. A convergência informacional


Esses mundos agora se interligam pelo ecossistema do open finance, no qual dados trafegam entre instituições e algoritmos em tempo real. Cada dado é simultaneamente medida e criação de valor — quantifica o risco e o produz. Essa dinâmica impõe ao Direito a formulação de uma teoria da responsabilidade informacional, que una Direito, economia e ciência de dados.

O mercado financeiro reflete, assim, a condição contemporânea do próprio Direito: um sistema vivo, autoajustável e interdependente.


6. Da pirâmide à rede


Hans Kelsen imaginou o Direito como uma pirâmide hierárquica e estática. O século XXI, contudo, inaugura uma topologia diversa: a do rizoma, conceito formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mille Plateaux (1980).

Conforme observam François Terré e Nicolas Molfessis, em Introduction générale au droit (13ᵃ éd., Dalloz, 2019, n.º 286-287, p. 368-371), a representação piramidal das fontes do Direito — herdada de Hans Kelsen — já não descreve a realidade jurídica contemporânea. O Direito se organiza hoje como réseaux et rhizome, isto é, como rede e rizoma: múltiplos centros de produção normativa coexistem, comunicam-se e se retroalimentam. A hierarquia cede espaço à interconexão; o centro dá lugar à multiplicidade. O rizoma, tomado de Deleuze e Guattari, exprime um sistema sem eixo único, onde cada ponto pode ligar-se a qualquer outro. As fontes jurídicas — constitucionais, internacionais, administrativas, privadas — formam um “ordre juridique éclaté”, um corpo normativo fragmentado, mas funcional, em que o fluxo informacional substitui a rigidez estrutural da pirâmide. Essa concepção ecoa diretamente na arquitetura das blockchains, dos smart contracts e das formas descentralizadas de governança, que materializam, no plano jurídico-tecnológico, a ideia de um direito-rizoma: policêntrico, distribuído e adaptável.

Assim, o blockchain e o open finance não são apenas inovações econômicas: são metáforas operacionais da nova ordem jurídica, em que a legitimidade circula — não mais se impõe de cima para baixo.


7. Direito, complexidade e transdisciplinaridade


Como ensina Edgar Morin, “a complexidade é o novo nome da realidade”. A transdisciplinaridade surge, portanto, como habitat natural do novo Direito: nela se encontram o jurista, o físico, o engenheiro e o filósofo, unidos pelo desafio de compreender sistemas complexos.

Nessa perspectiva, o Direito deixa de ser mera técnica de controle e passa a ser ciência de tradução: traduz o fato em linguagem, o dado em valor, a incerteza em legitimidade. Ex dato oritur ius significa reconhecer que a informação é, ao mesmo tempo, objeto e meio da norma jurídica.


8. Conclusão – Cartografar a incerteza


O futuro do Direito será biográfico, quântico e informacional. Biográfico, porque precisa revisitar suas origens;quântico, porque opera por superposições e colapsos interpretativos;informacional, porque o dado é o novo átomo da normatividade.

A dogmática clássica buscou eliminar o indeterminado; a contemporânea procura cartografá-lo. O jurista do século XXI é, antes de tudo, um cartógrafo da complexidade, traçando mapas provisórios sobre mares mutáveis.

A revolução do mercado financeiro não é apenas tecnológica, mas ontológica. O Direito, ao nascer dos dados, precisa reaprender a narrar os fatos. Entre o fato e o dado, reencontra sua vocação mais antiga: traduzir a complexidade em legitimidade.

Ex dato oritur ius.

Bibliografia


  • ÁVILA, Humberto. Teoria da Indeterminação da Linguagem. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2024.

  • COELHO, Fábio Ulhoa. Uma Biografia Não Autorizada do Direito. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2024.

  • COSTA, Isac S. da; PRADO, Viviane M.; GRUPENMACHER, Giovana T. (orgs.). CryptoLaw: Inovação, Direito e Desenvolvimento. São Paulo: Almedina, 2020.

  • COSTA, Isac Silva da. Mercado de Capitais, Inovação e Regulação Adaptativa. São Paulo: Almedina, 2023.

  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux: Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1980.

  • TERRÉ, François; MOLFESSIS, Nicolas. Introduction générale au droit. 13ᵉ éd. Paris: Dalloz, 2019.

  • FABIANI, Marcelo Godke Veiga. Direito Bancário 4.0. São Paulo: Quartier Latin, 2022.

  • FORTUNA, Eduardo. Mercado Financeiro: Produtos e Serviços. 26ª ed. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2021.

  • MIRANDA, Bruno Felipe de Oliveira e. “Por uma Dogmática da Nesciência.” ConJur, 27 fev. 2025.

  • MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

  • PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados Financeiros. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

  • RIZZARDO, Arnaldo. Direito Bancário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

  • PELLINI, Rudá. O Futuro do Dinheiro. São Paulo: Gente, 2020.

 
 
 

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