Depauperamento Intelectual Transdisciplinar: essa infecção tem cura?
- gleniosabbad
- 16 de nov.
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Por Glênio S Guedes ( advogado )
“O único símile do infinito é a burrice.”
Roberto Campos
“Onde todos pensam igual, ninguém está pensando.”
Walter Lippmann
I — Prólogo ao leitor paciente (ou cúmplice)
Se o leitor chegou até aqui, devo preveni-lo: corre o risco de recuperar a inteligência, e, como bem sabem nossos terapeutas contemporâneos, pensar dói mais do que inflação, imposto ou colostomia moral. Há quem prefira morrer confortável a viver lúcido: questão de gosto, talvez até de estilo.
Não julgue, porém, que escrevo com espírito de superioridade — nada disso. Sou apenas um observador, desses que, sentados na poltrona da História, assistem ao espetáculo da burrice organizada, financiada, regulamentada e, nalguns casos, até laureada com diploma de pós-doutoramento.
II — A nova peste do século: não mata o corpo, mas se alimenta da alma
Chamo-lhe Depauperamento Intelectual Transdisciplinar (vulgo D.I.T.), moléstia que acomete os cidadãos que aprenderam a operar ferramentas, mas desaprenderam a pensar ideias; que dominam normas administrativas, mas ignoram metáforas; que citam relatórios internacionais, mas jamais folhearam Montaigne, Pascal, Spinoza, Goethe ou Guimarães Rosa.
O doente moderno é paradoxal: alfabetizado e analfabeto; conectado e desinformado; formado e deformado; produtivo e estéril.
Vive num mundo de telas, mas não consegue ver o mundo.
III — Etiologia moderna: como se fabrica um sábio ignorante
A doença nasce de pequenas doses diárias, administradas com precisão hospitalar:
Antibiótico curricular: tudo é dividido em disciplinas estanques; filosofia não conversa com ciência, direito não baila com história, matemática não acena à música.
Xarope do utilitarismo imediato: o conhecimento só presta se tiver aplicabilidade econômica antes de completar 48 horas.
Jejum de imaginação: o aluno é treinado para passar exames, nunca para dialogar com o espelho da Eternidade.
Não se trata de um vírus, mas de uma política cognitiva.
IV — O sintoma mais grave: universalização do pensamento homogêneo
Não se exige mais que o sujeito leia Dante, Ricoeur ou Hannah Arendt; basta-lhe recitar slogans (de preferência curtos, emocionantes e indignados).
Discutem-se temas complexos com ferramentas mínimas, e a plateia vibra, porque a ignorância hoje tem marketing, hashtags e camisetas temáticas.
O medo não é que o homem deixe de pensar: é que se felicite por não pensar.
V — A sociedade pós-gramatical: o triunfo do improviso argumentativo
Se Machado escrevesse nos dias presentes, ainda que pela pena de Dona Plácida, talvez concluísse que estamos diante de uma sociedade que ama o efeito, mas despreza a causa; idolatra a opinião, mas foge da investigação; adora a polêmica, mas abomina o estudo.
Debate-se como quem dança samba com as mãos amarradas e, ao final, proclama-se campeão de si mesmo.
Lembra-me o célebre Humanitismo de Quincas Borba, agora atualizado:
“Ao vencedor, as curtidas; ao vencido, o algoritmo.”
VI — Há cura? Ou estamos todos “pedia-mentalmente” em estado terminal?
Sim, há cura — mas o paciente não quer tomar o remédio.
A farmacologia da inteligência exige:
Clássicos administrados em jejum;
Conversações sem mediadores eletrônicos;
Estudos que não visem apenas concursos;
Arte, filosofia e silêncio;
Humildade epistemológica: saber que não sabemos é a porta de entrada no hospital da sabedoria.
Contudo, caro leitor, cura é sempre voluntária — até Deus pede consentimento informado.
VII — Conclusão: preventivo irônico para almas ainda vivas
Termino com ironia machadiana, quase médica: se o leitor se reconhecer enfermo, não se desespere; quem sabe que está doente já escapou da UTI cognitiva.
A tragédia é a multidão que, caindo do precipício, acredita estar subindo.
Recomendo, como receita final, três doses diárias de leitura profunda, dois comprimidos de reflexão lenta, e uma injeção mensal de dúvida metódica.
Se o tratamento surtir efeito, o Brasil terá menos especialistas em jargão e mais construtores de sentido; menos doutores em formulários e mais médicos da inteligência humana.
Caso contrário, rende-se a pátria aos peritos da mediocridade infinita.

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