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De Copacabana à Penha: o Enem precisa falar de segurança pública

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 29 de out.
  • 6 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )


A operação com 120 mortos ( subindo ) mostrou o fracasso da força bruta. Que tal ouvir 3,9 milhões de jovens sobre o tema?


I. Um país ferido, um espelho em silêncio


O amanhecer de 28 de outubro de 2025 ficará marcado como um dos capítulos mais sombrios da história recente do Rio de Janeiro. A megaoperação policial que atravessou a zona norte e chegou ao Complexo da Penha deixou ao menos 120 mortos, ônibus incendiados, escolas fechadas e uma cidade em estado de choque. Os relatórios preliminares apontam falta de coordenação entre forças, uso desproporcional da força letal e ausência de comunicação com o poder civil. Não foi apenas uma tragédia policial — foi um espelho da falência das políticas de segurança pública.

E é por isso que, de Copacabana à Penha, o Brasil precisa debater o tema mais urgente de sua história recente: a segurança pública como política de Estado e de humanidade. O Enem 2025, com seus 3,9 milhões de participantes, poderia ser o laboratório nacional de teses e propostas, capaz de transformar a dor em pensamento crítico e ação ética.


II. O dever moral do Enem


O Exame Nacional do Ensino Médio não é apenas uma prova: é um ritual cívico, em que milhões de jovens escrevem sobre os dilemas do país. Em 2025, o tema da redação não pode ser indiferente à tragédia social que testemunhamos. Se o Enem se propõe a medir competências cidadãs, há um dever moral em colocar a segurança pública no centro da reflexão.

A Competência V — que avalia a capacidade de propor intervenções viáveis e humanizadas — transforma a redação num espaço público de invenção cívica. Cada texto é uma hipótese; cada argumento, uma tentativa de solução. Trata-se de um laboratório de teses vivas, escritas por milhões de mentes frescas, algumas preparadas, outras ainda em formação, mas todas atravessadas pelo mesmo sentimento: o medo de viver em um país que naturalizou a violência.

O Enem, ao escolher o tema da segurança pública, não apenas promoveria um exercício linguístico, mas um ato de escuta coletiva.


III. A tragédia como catalisador ético


A crise da segurança pública brasileira ultrapassa a dimensão policial. Ela envolve políticas de prevenção, desigualdade social, urbanismo, gestão pública, educação, drogas e juventude. O colapso é também moral, administrativo e pedagógico. As mortes de outubro de 2025 revelam o que Edgar Morin chama de “crise do pensamento simplificador” — a crença de que armas resolvem problemas complexos.

“Existe uma inadequação cada vez maior, profunda e grave entre os nossos conhecimentos disjuntos e os problemas cada vez mais multidimensionais.”— Edgar Morin, A inteligência da complexidade (Peirópolis, 2000)

Os dados de 2025 mostram uma aparente contradição: o Estado do Rio de Janeiro caminha para encerrar o ano com menos de 3 mil homicídios dolosos pela primeira vez em uma década, mas a letalidade policial continua entre as mais altas do país. Em 2024, 699 mortes foram causadas por intervenção de agentes do Estado, o que representou 21,6% dos homicídios dolosos registrados. Proporcionalmente, o Rio foi superado por estados como Amapá, Goiás, São Paulo, Bahia e Pará, mas isso não significa melhora — apenas um novo padrão de tolerância ao anormal, em que a guerra urbana se torna rotina.

Pesquisadores da Universidade Federal Fluminense observam que houve reconfiguração territorial do crime organizado. Segundo o sociólogo Daniel Hirata, o controle territorial nas favelas ocorre por duas lógicas: a de colonização, típica das milícias, e a de conquista, associada ao Comando Vermelho. A retração das milícias e o fortalecimento de facções tradicionais criaram novas fronteiras de violência, mesmo em regiões antes pacificadas. Assim, o problema da segurança pública não é apenas de enfrentamento armado, mas de governança urbana, inteligência e prevenção.


IV. As cinco competências e o laboratório de ideias


O Enem, ao adotar o tema “Segurança Pública no Brasil: desafios para a convivência e a cidadania”, poderia mobilizar todas as cinco competências de modo exemplar.


Competência I — Domínio da norma culta

O candidato demonstraria clareza e precisão ao tratar de um tema técnico e sensível, evitando termos bélicos ou preconceituosos — um ato de respeito e ética linguística.


Competência II — Compreensão do tema

Compreender segurança pública é compreender as múltiplas causas da violência:o enfraquecimento de políticas sociais, a expansão das facções e a ausência de planejamento urbano. As estatísticas de letalidade policial, as decisões judiciais que restringem operações em favelas (como a ADPF 635, de 2020, relatada por Edson Fachin - causa ou correlação?) e os efeitos da desigualdade territorial podem servir de base concreta para análises críticas.


Competência III — Organização argumentativa

Aqui o estudante precisaria hierarquizar causas e consequências: falta de prevenção, desvio de recursos, ausência de inteligência policial, armamento descontrolado e descrédito institucional. A coerência argumentativa torna-se, nesse caso, um exercício de cidadania — e de pensamento complexo.


Competência IV — Coesão e coerência

A boa redação costuraria diagnósticos e soluções, articulando o social ao jurídico, o ético ao econômico — o que Morin denomina complexus, o tecido das relações.


Competência V — Proposta de intervenção

A Competência V exige agir com consciência: propor medidas específicas, exequíveis e humanizadas. O jovem poderia sugerir, por exemplo:


  • Integração entre forças de segurança e políticas de prevenção social;

  • Fortalecimento de inteligência policial baseada em dados e georreferenciamento de crimes;

  • Capacitação ética das corporações e monitoramento independente de operações;

  • Programas de reinserção de egressos e contenção do recrutamento juvenil pelo crime;

  • Educação comunitária voltada à cultura de paz e diálogo interinstitucional.


Cada redação se tornaria uma microproposta de reconstrução democrática, um gesto de ética e razão no meio do ruído da violência.


V. O Enem como escuta pública


Imagine o impacto de milhões de jovens refletindo simultaneamente sobre violência, justiça e convivência. As redações digitalizadas poderiam ser analisadas para identificar padrões de argumentação, prioridades sociais e percepções de insegurança. A partir disso, o MEC e o Ministério da Justiça poderiam publicar relatórios anuais de ideias juvenis, transformando a prova em instrumento de escuta democrática.


VI. Competência V e o dever moral de agir


A Competência V, conforme a Cartilha, avalia a capacidade de propor intervenções respeitosas aos direitos humanos. Em tempos de barbárie, esse critério se torna imperativo moral. Ensinar jovens a propor soluções é o oposto de treiná-los para a indiferença. Um tema como segurança pública pode transformar a redação em ensaio nacional sobre a empatia e a ação ética.


VII. Educação, segurança e complexidade

“A reforma do ensino deve conduzir à reforma do pensamento, e a reforma do pensamento deve conduzir à reforma do ensino.”— Edgar Morin, A inteligência da complexidade (Peirópolis, 2000)

Morin ensina que educar é reformar o pensamento. A segurança pública, por sua vez, exige essa mesma reforma: compreender a vida social como sistema interligado, onde a violência, a desigualdade e a impunidade são partes de um todo que precisa ser pensado em rede. Reduzir o problema a “bandido versus polícia” é empobrecer o pensamento; entendê-lo como fenômeno cultural, econômico e psicológico é exercitar a inteligência da complexidade.


VIII. Conclusão: quando a redação vira política pública


O tema “Segurança Pública no Brasil” não seria apenas oportuno, mas pedagogicamente transformador. A prova, mais do que avaliar, passaria a coletar a inteligência moral do país. Em vez de apenas corrigir erros, o Estado aprenderia com as palavras de seus jovens.

“A complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio a enfrentar.”— Edgar Morin, Introdução ao pensamento complexo (Sulina, 2015)

Bibliografia


BRASIL. Cartilha do(a) Participante: Redação do Enem 2025. Brasília: Inep/MEC, 2025.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025. São Paulo: FBSP, 2025.

HIRATA, Daniel. Relatório do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2025.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015.

MORIN, Edgar. A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolis, 2011.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Brasília: UNESCO, 2015.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Nova York: ONU, 2015.


 
 
 

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