Da Paciência com os Conceitos: uma Usina de Pensamento
- gleniosabbad
- 4 de nov.
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Por Glênio S Guedes ( advogado )
“Filosofar é aprender a ter paciência com os conceitos.”— Sílvio Gallo, Metodologia do ensino de filosofia (Papirus, 2020)
1. Introdução: o tempo e o ofício de pensar
Em um tempo em que tudo se quer rápido — respostas, resultados, diagnósticos, métodos —, o ensino de filosofia nos convida ao contrário: a cultivar a lentidão do pensamento. Ensinar filosofia, ensina Sílvio Gallo, não é transferir doutrinas, mas aprender a esperar que os conceitos amadureçam. Essa espera — que é ativa, rigorosa e criadora — é a verdadeira paciência do conceito.
A filosofia não nasce pronta. Ela se elabora no atrito entre perguntas, na lentidão das leituras, na dúvida que se alonga, na pausa que interrompe a pressa. É por isso que o professor de filosofia não é um transmissor de respostas, mas um artesão do tempo — aquele que fabrica intervalos onde o pensar pode respirar.
2. Sílvio Gallo e o elogio do pensamento vivo
Poucos textos contemporâneos sobre ensino filosófico atingem a força e a lucidez de Metodologia do Ensino de Filosofia, de Sílvio Gallo. Mais que um manual, é uma obra de iniciação filosófica e, ouso dizer, um ato de resistência pedagógica. Lê-lo é reencontrar o sentido mais antigo da filosofia: o amor pela sabedoria que se constrói junto ao outro, no diálogo, na escuta, na criação de conceitos.
Há livros que se tornam indispensáveis para quem ensina filosofia. Este é um deles — e não por prescrição burocrática, mas por obrigação moral:nenhum educador da filosofia deveria passar sem lê-lo. Pois Gallo nos lembra que o professor é, antes de tudo, um mestre ignorante — aquele que se abre à experiência de aprender com seus próprios alunos.
Trata-se, como o próprio autor diz, de escapar das “malhas do método da explicação” e reencontrar a didática da criação.
3. A paciência do conceito: ética e estética do pensar
A paciência com os conceitos é uma forma de ética intelectual. Implica saber que o pensamento não se impõe, mas se oferece. Não se decreta o conceito: escava-se, lapida-se, espera-se por ele.
Essa paciência é também estética, pois requer sensibilidade para perceber os movimentos sutis da ideia. Deleuze e Guattari diziam que pensar é “criar conceitos”, e Gallo nos recorda que tal criação é lenta, laboriosa, e exige o mesmo cuidado que o artista tem com sua obra. Daí a analogia fecunda: o ensino filosófico é uma usina de pensamento, onde o professor opera a energia bruta do real, transformando-a em sentido.
4. A transversalidade como exercício de paciência
Em Gallo, a paciência também é transversalidade — termo que ele resgata de Guattari, mas reconduz à prática pedagógica. Transversalizar é conectar sem hierarquizar, relacionar sem dominar. Significa que o ensino filosófico deve dialogar com a arte, com a ciência, com a literatura e com a vida cotidiana, sem se dissolver em nenhuma delas.
Essa paciência transversal é o oposto da pressa interdisciplinar que busca sínteses apressadas. Ela exige tempo, escuta e permeabilidade. A filosofia, nesse sentido, é a arte de suportar o inacabado, de permanecer entre os campos do saber, onde tudo se comunica, mas nada se confunde.
5. Ensinar é resistir: o professor como artesão e operário
Ter paciência com os conceitos é, hoje, um gesto político. Numa cultura dominada pela produtividade e pelo “mercado das ideias”, a lentidão filosófica é resistência. O professor que recusa o imediatismo e o utilitarismo cumpre um papel insubstituível: restaurar a dignidade do pensar.
A sala de aula é, então, uma usina de pensamento — espaço de produção simbólica, onde cada conceito é uma centelha e cada pergunta, um motor. O professor opera como um engenheiro do sentido e, ao mesmo tempo, como um poeta do pensamento. Sua tarefa é fazer do pensar um acontecimento: algo que nasce ali, diante de todos, e que ninguém pode prever.
6. Filosofia e lentidão: a arte de demorar-se
Vivemos, diz Edgar Morin, sob o império da simplificação. A filosofia é, talvez, a última arte que nos ensina a demorar-nos nas coisas — a escutar suas contradições, a suportar sua complexidade. Ter paciência com os conceitos é recusar o pensamento fácil, linear, redutivo. É, como diz Nietzsche, “um exercício de recusa da opinião”.
A lentidão filosófica é, portanto, uma virtude cognitiva: ela impede que o pensamento se torne propaganda, que o ensino se converta em treinamento. Paciência, aqui, é profundidade.
7. Conclusão: o futuro paciente da filosofia
Concluir é retomar o começo: a filosofia é um convite à demora. Num mundo de algoritmos e respostas instantâneas, ela resiste como o último espaço do não-saber produtivo — o intervalo onde ainda se pode pensar. Sílvio Gallo encerra seu livro com uma frase que é também um desafio:
“O ensino de filosofia será filosófico, ou não o será de forma alguma.”
Essa sentença deveria ser repetida como um mantra nas licenciaturas e nas escolas. Porque ter paciência com os conceitos é, em última instância, ter fé na inteligência humana — acreditar que pensar ainda vale a pena.
Bibliografia
GALLO, Sílvio. Metodologia do Ensino de Filosofia: uma didática para o ensino médio. Campinas: Papirus, 2020.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
GUATTARI, Félix. Psicanálise e Transversalidade. Editora Ideias e Letras, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MORIN, Edgar. O Método 1: A Natureza da Natureza. Porto Alegre: Sulina, 2003.

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