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COMMON LAW E DIREITO ROMANO: O MESMO CASO SOB DUAS RAZÕES

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 31 de out.
  • 6 min de leitura

Glênio Sabbad Guedes ( advogado )


“Lo Stato non crea diritto, lo Stato crea leggi, e Stato e leggi stanno sotto il diritto.”


Erich Kaufmann, Die Gleichheit vor dem Gesetz (1927)


“Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat.”– Digesto 50.17.1 (Paulo)
“The life of the law has not been logic; it has been experience.”– Oliver Wendell Holmes Jr., The Common Law, 1881

1. Introdução: o caso como origem da razão jurídica


O direito, antes de ser um sistema, foi uma prática de prudência. Tanto o jurista romano do século I a.C. quanto o juiz inglês do século XIII enfrentavam o mesmo dilema: como transformar um conflito particular em regra comum sem trair a singularidade dos fatos?

No mundo romano, esse gesto chamava-se interpretatio prudentium; na Inglaterra medieval, reasoning by precedent. Ambos descrevem o mesmo movimento da inteligência jurídica: a passagem do caso à norma pela via da analogia.

É precisamente essa convergência que Letizia Vacca ilumina, no capítulo IV de sua obra La giurisprudenza nel sistema delle fonti del diritto romano (2ª ed., Giappichelli, Torino), ao reconstituir o método casuístico da jurisprudência clássica: um modo de pensar que se situa entre o empirismo da ars boni et aequi e a racionalidade sistemática do ius civile. Em sua leitura, o jurista romano é um “intérprete que encontra” (qui invenit), não um legislador que cria; e essa atitude mental o aproxima mais do common lawyer que do codificador moderno.


2. A prudência romana e o nascimento da razão casuística


A autora demonstra que, desde Labeone, Africano e Juliano, o direito romano clássico organizava-se não pela codificação, mas pela repetição comparativa dos casos. O ius era uma ciência da prudência (scientia prudentiae), cujo método consistia em observar, distinguir e assimilar.

“Solo l’analisi delle situazioni concrete ‘simili’ permetterà di verificare la corrispondenza al diritto da utilizzare...”(Vacca, p. 178)

A assimilatio e a distinctio — categorias extraídas dos textos de Juliano — são o embrião daquilo que, na Common Law, será chamado de ratio decidendi e distinguishing. Em ambos os universos jurídicos, o raciocínio não parte do abstrato para o concreto, mas do caso para o princípio, num movimento de ida e volta que confere ao direito a elasticidade necessária para permanecer justo.

O jurista romano não cria novas leis; ele reajusta as existentes à luz da equidade (aequitas), instrumento de correção e medida. Sua autoridade vem da auctoritas prudentium — um consenso operativo que lembra a binding force dos precedentes ingleses antes de serem formalmente vinculantes.


3. Common Law: o precedente como prudência institucional


A tradição inglesa, nascida no século XII sob a égide dos tribunais reais (King’s Bench, Common Pleas), desenvolveu um método semelhante, ainda que em contexto distinto: o direito não era um código, mas um acúmulo de decisões coerentes, orientadas pela memória dos casos anteriores. Daí a máxima de Lord Coke: “The common law is nothing else but reason.”

O reasoning by precedent é, em essência, uma técnica de continuidade prudencial. O juiz não inventa o direito; ele o descobre na trama dos precedentes, assim como o romano “encontrava” o ius no costume e na prática dos prudentes.

Ambos compartilham uma mesma racionalidade:– empírica, porque nasce da experiência dos fatos;– analógica, porque raciocina por semelhança;– dialética, porque ajusta a regra à exceção.

Mas diferem em dois pontos:


  1. a Common Law institucionalizou o precedente (vertical e horizontalmente), enquanto Roma o manteve como prudência individual;

  2. e o direito romano possuía um horizonte filosófico unitário (ratio naturalis), ausente no pluralismo empírico da tradição inglesa.


4. O argumento e a virada da razão jurídica


A comparação permite ver que a primeira virada do direito romano não foi dogmática, mas argumentativa. Quando Labeone introduz a aequitas interpretativa, ele transforma o direito em discurso racional. Juliano, por sua vez, completa essa virada ao unificar o raciocínio analógico com a exigência de coerência sistêmica.

Nessa altura, o jurista romano já pratica uma forma de hermenêutica jurídica que antecipa o raciocínio do juiz moderno: a construção de uma “solução justa” mediante analogia e equidade. O mesmo ocorre com os juízes ingleses na passagem do século XVII, quando, diante da rigidez das formas, a Chancery introduz a equity como instância corretiva do common law.

Assim, tanto em Roma quanto em Westminster, a equidade surge como o princípio de adaptação racional do direito à vida, um dispositivo de justiça dinâmica. A aequitas labeoniana e a equity inglesa não se confundem historicamente, mas compartilham uma mesma função epistemológica: corrigir o formalismo pela razão prática. Em ambos os casos, o direito aparece não como sistema de comandos, mas como ordem discursiva da prudência, em que a norma é fruto da argumentação, e não da dedução.


5. As duas razões do mesmo caso


Quando o romano julga, ele raciocina ex bono et aequo; quando o inglês decide, ele invoca o rule of reason. Ambos buscam o equilíbrio entre o caso singular e a coerência do sistema.

Mas há uma diferença epistemológica fundamental:– o romano raciocina pela autoridade prudencial (a tradição do ius respondendi);– o inglês raciocina pela autoridade institucional (o precedente vinculante).

A primeira é racionalidade prudencial, fundada na virtude e na experiência; a segunda é racionalidade processual, fundada na estabilidade e na previsibilidade. Porém, em ambas, o direito é um modo de pensar o justo, não um código de regras.

É isso que Letizia Vacca quer dizer ao afirmar que o jurista “encontra” o direito por meio da análise das situações “similares”: o ius é descoberto, não decretado — inventum, não constitutum.


6. A convergência profunda: analogia, equidade, experiência


O ponto de contato entre Roma e a Common Law está, portanto, na tríade:analogia – equidade – experiência.


Elemento

Direito Romano

Common Law

Função Epistemológica

Analogia

Assimilatio / distinctio

Reasoning by precedent

Coerência entre casos

Equidade

Aequitas (Labeone, Juliano)

Equity (Chancery Courts)

Correção do formalismo

Experiência

Prudentia iuris

Legal reasoning

Fonte de legitimidade


Ambos os sistemas rejeitam o formalismo abstrato. A verdade jurídica é fruto da experiência controlada pela razão — aquilo que Holmes chamará, séculos depois, de “experience working by logic.”


7. Consequências filosóficas e históricas


A comparação entre Roma e Common Law permite repensar a genealogia da razão jurídica ocidental. A modernidade codificadora — de Justiniano a Napoleão — interrompeu esse fluxo prudencial, substituindo o discurso argumentativo pela dedução silogística. Mas tanto a Common Law quanto a tradição dos prudentes romanos mantiveram viva a racionalidade prática, baseada na argumentação e na casuística.

Por isso, como escreve Vacca, “a análise dos casos semelhantes permite verificar ou modificar os princípios em função da experiência” — o que é, em essência, o método da jurisprudência e também o coração do case law. Ambos são direitos de tradição narrativa, e não de imposição lógica.


8. Conclusão: o mesmo caso sob duas razões


O que separa Roma e Westminster não é o caso, mas a razão com que é ele interpretado. O common lawyer busca a razão da decisão (ratio decidendi); o jurista romano busca a razão da justiça (ratio aequitatis).

Mas ambos partem do mesmo ponto: o caso concreto como lugar do saber jurídico. O direito nasce no encontro entre a norma e a vida — ubi casus, ibi ius.

Em Vacca, o direito romano aparece como uma razão casuística que pensa analogicamente; na Common Law, essa razão sobrevive como instituição do precedente. São, em última análise, duas faces do mesmo gesto hermenêutico:

o de converter a experiência em norma e a norma em experiência.

Bibliografia


  • VACCA, Letizia. La giurisprudenza nel sistema delle fonti del diritto romano. 2ª edizione riveduta ed ampliata. Torino: G. Giappichelli Editore, 1988. (Capítulo IV: Il metodo casistico della giurisprudenza classica).

  • GROSSI, Paolo. Mitologie giuridiche della modernità. Milano: Giuffrè, 2001.

  • VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne. Paris: Presses Universitaires de France, 1968.

  • HOLMES Jr., Oliver Wendell. The Common Law. Boston: Little, Brown and Company, 1881.

  • MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Clarendon Press, 1978.

  • PERELMAN, Chaïm. Logique juridique. Nouvelle rhétorique. Paris: Dalloz, 1976.

  • RICOEUR, Paul. Le juste. Paris: Éditions Esprit, 1995.


 
 
 

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