Carta Editorial – Direito e Transdisciplinaridade
- gleniosabbad
- 6 de out.
- 3 min de leitura
Atualizado: 8 de out.
Por Glênio Sabbad Guedes
“Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει.”
Todos os homens, por natureza, desejam conhecer.
— Aristóteles, Metafísica, Livro I, Capítulo 1
1. Um convite à reflexão
Bem-vindo(a) a O Direito no Século XXI.
Este espaço nasce da convicção de que o Direito contemporâneo precisa reencontrar a sua vocação humanista e transdisciplinar.
A complexidade do nosso tempo — tecnológica, ecológica e cultural — já não se ajusta a um pensamento jurídico fragmentado e reducionista.
A crise atual é, como diria Thomas Kuhn, paradigmática: o modelo cartesiano-newtoniano, que tratava o mundo como máquina previsível, já não dá conta das novas “anomalias” de uma sociedade interconectada, digital e plural. O Direito, moldado nesse paradigma, tornou-se compartimentalizado, hierárquico e distante da vida.
2. Do mecanicismo à rede
O século XXI exige outra lógica: a da rede, não a da árvore. Deleuze e Guattari chamaram essa forma de pensar de rizomática: múltiplas conexões, sem centro nem hierarquia.
A física quântica confirma esse modelo, mostrando o universo como uma teia de relações. E a neurociência, ao mapear o conectoma, revela que pensar é, literalmente, conectar.
Assim também deveria ser o Direito: um sistema vivo, relacional, aberto a novos vínculos e sensibilidades.
Quando essas conexões se corrompem, o Direito adoece — torna-se uma “conectopatia normativa”, desconectada da realidade social que deveria servir.
3. Por que transdisciplinaridade?
A transdisciplinaridade, segundo Basarab Nicolescu, é o movimento que vai além das disciplinas. Ela integra saberes científicos, filosóficos, artísticos e espirituais, reconhecendo diferentes níveis de realidade.
Mais do que dialogar com outras ciências, o Direito precisa reaprender a escutar a vida.
Isso implica incorporar epistemologias não ocidentais:
as africanas, que pensam o ser em relação à comunidade;
as asiáticas, que valorizam a harmonia e o equilíbrio ético;
as indígenas, que veem o território como um ser vivo, e não um objeto de apropriação.
Trata-se de um gesto de descolonização epistemológica, que busca restaurar a diversidade de racionalidades no campo jurídico.
4. Princípios da Transdisciplinaridade Jurídica
Princípio | Origem / Autor | Sentido aplicado ao Direito |
Incerteza | Heisenberg | Toda decisão jurídica contém um grau inevitável de indeterminação; reconhecer isso é parte da justiça. |
Complementaridade | Niels Bohr | Razão e emoção, norma e vida, indivíduo e sociedade não se opõem, mas se completam. |
Autopoiese | Maturana & Varela | O sistema jurídico se (re)cria continuamente, em diálogo com a sociedade. |
Terceiro Incluído | Nicolescu | Entre o legal e o ilegal há zonas cinzentas que exigem novas categorias. |
Holografia | Princípio holístico | O todo está nas partes e as partes refletem o todo — cada caso é microcosmo do sistema. |
Esses princípios formam o núcleo epistemológico de um novo Direito: aberto, adaptativo e orientado à justiça concreta.
5. O risco e o desafio
Assumir a transdisciplinaridade é enfrentar dilemas.
De onde vem a normatividade em um sistema rizomático, sem centro? Como evitar o relativismo absoluto que dissolve a ideia de Justiça? E como reconhecer as redes de poder que persistem mesmo na descentralização?
Essas perguntas não anulam o projeto, mas o legitimam. A transdisciplinaridade não é fuga da norma — é busca de novos fundamentos de validade, diálogo e legitimidade.
6. A era da ruptura
Como lembra Marc Halévy, vivemos o fim da modernidade. O Direito, submetido ao mercado e à técnica, perdeu o vínculo ético com o humano.Boaventura de Sousa Santos já alertava: a democracia foi capturada pelo capitalismo, e a lei passou a servir à economia.
Mas há uma nova paisagem em gestação — um Direito complexus, que entrelaça o jurídico, o ético e o cósmico.
Essa é a “revolução noética” de que fala Halévy: o despertar de uma nova consciência coletiva.
7. Um olhar romano
No encerramento, o Direito Romano nos recorda: Não é a força que cria o Direito. É o Direito que legitima o uso da força.
Em Roma, a força do Direito não era a coerção, mas a racionalidade convincente. A lei não nascia do poder, mas da auctoritas — o saber reconhecido, prudente e socialmente aceito.
Talvez o Direito transdisciplinar reencontre aqui sua vocação original: um saber prudencial, criador de consensos e de sentido.
8. Conclusão – O repto do nosso tempo
Vivemos, como em Sófocles, uma condição de pantopóros áporos: temos muitas passagens, mas seguimos diante de impasses.
O desafio é transformar as passagens em caminhos éticos, as crises em sínteses criativas.
A transdisciplinaridade é esse caminho.
Ela não dissolve o Direito — o reencanta.
Faz dele uma arte de reconectar, de ouvir o invisível, de fazer justiça com a razão e com o coração.
Glênio Sabbad Guedes
Advogado
Fundador do portal O Direito no Século XXI

Comentários