ASSIMETRIA COGNITIVA E DOLO EPISTÊMICO: O CORAÇÃO DA FRAUDE MÉDICA MODERNA
- gleniosabbad
- 25 de nov.
- 5 min de leitura
Por Glênio S. Guedes (advogado)
1. Introdução: quando a autoridade técnica se converte em ilusão
Nos dias 24 e 25 de novembro de 2025, dois dos maiores jornais do país — O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo — publicaram reportagens que expõem um fenômeno inquietante: a combinação perigosa entre pseudociência, exploração comercial e erosão da confiança pública na Medicina.
O editorial do Estadão denunciou que médicos antivacina, protagonistas da desinformação durante a pandemia de covid-19, agora lucram com cursos, consultas particulares e “tratamentos” para uma síndrome inexistente: a chamada “spikeopatia”.
A Folha, no dia seguinte, aprofundou o problema: o artigo que tentava justificar cientificamente essa suposta síndrome — intitulado “Síndrome pós-spike” — foi despublicado por falta total de evidência, após ter alegado falsamente não haver conflito de interesse entre seus autores, justamente porque estes vendiam os protocolos derivados da doença fictícia.
Temos, portanto, a anatomia de um fenômeno perigoso:
profissionais investidos de autoridade técnica explorando a ignorância técnica do público — a assimetria cognitiva — para obter vantagem comercial.
Ao lado disso, o jornal Valor Econômico revelou outro componente estrutural do problema:a explosão de vagas em cursos de medicina (muitas abertas por liminar), mensalidades altíssimas, inadimplência crescente e formação acelerada de médicos sem condições de treino adequado.
É nesse caldo de expansão desordenada, judicialização e vulnerabilidade acadêmica que proliferam as figuras do médico negacionista, do curandeiro de jaleco e do empreendedor da pseudociência.
2. O que é a “spikeopatia” — e por que ela não existe
Segundo o editorial do Estadão, “spikeopatia” ou “síndrome pós-spike” é:
uma condição inventada, supostamente causada pela proteína spike presente tanto no coronavírus quanto nas vacinas de RNA mensageiro;
sem registro na literatura científica, sem descrição formal, sem validação clínica e sem desfechos mensuráveis;
uma ficção médica criada para se diferenciar da Covid longa, essa sim reconhecida por CDC, OMS, NIH e dezenas de estudos robustos.
A spikeopatia opera como um truque retórico clássico:
Pega-se algo real (a spike do SARS-CoV-2).
Misturam-se interpretações fragmentadas de estudos in vitro.
Ignoram-se os dados clínicos reais (que mostram segurança robusta das vacinas).
E cria-se uma “síndrome” impossível de ser refutada — porque ela não aparece nos exames convencionais.
É o que Carl Sagan chamou de “Dragão na Garagem”: “Ele está lá, mas só eu posso vê-lo” —e, convenientemente, só eu vendo o tratamento.
3. O mecanismo da fraude: quando “parecer verdade” basta para gerar lucro
A espinha dorsal da pseudociência moderna é simples:
Transformar plausibilidade em certeza, e incerteza em produto.
A spikeopatia nasce da confusão entre:
plausibilidade mecanicista (“algo poderia acontecer com base num mecanismo teórico”)e
evidência clínica real (“isso realmente acontece em seres humanos?”).
A Medicina Baseada em Evidências (MBE) ensina que mecanismo não é evidência. A história está repleta de intervenções que “pareciam” fazer sentido — e mataram pacientes.
No caso da spikeopatia:
não houve randomização;
não houve grupo controle;
não houve replicação;
não houve análise estatística;
não houve rigor metodológico.
Houve apenas narrativa, ansiedade pública e modelo de negócio.
4. O negacionismo como mercado: a economia do medo
A Folha foi incisiva: estamos vivendo o negacionismo de mercado.
Funciona assim:
Cria-se o problema (uma doença inexistente).
Amplifica-se o medo (e se for verdade?).
Descredibiliza-se a ciência (“a grande mídia não quer que você saiba”).
Vende-se a solução (consultas, protocolos, detox, suplementos).
É o mesmo modelo mental que sustenta:
pirâmides financeiras;
influencers de “trader quântico”;
pastores que vendem “cura espiritual mediante transferência PIX”;
coaches que prometem “reprogramação celular”;
advogados que prometem “aposentadoria milagrosa garantida”.
O mal não é exclusivo da Medicina. A Medicina é apenas o terreno mais frágil — porque mexe com dor, saúde e medo, os três gatilhos mais fortes do comportamento humano.
5. O colapso silencioso da formação médica no Brasil: o alerta do Valor Econômico
A reportagem do Valor Econômico (25/11/2025) adiciona um elemento estrutural absolutamente central:
A formação médica brasileira está se expandindo de modo caótico, judicializado e financeiramente insustentável.
Alguns dados do Valor:
4.354 vagas de medicina foram abertas via decisões judiciais.
Esse número pode chegar a 4.689.
Há faculdades operando sem credenciamento, graças a liminares.
A inadimplência em Medicina é elevada e crescente.
A mensalidade média é de R$ 13 mil.
Muitas instituições não conseguem fechar turmas, mesmo com bolsas.
A relação candidato/vaga caiu de 27:1 (2014) para 7,4:1 (2024).
A expansão é acelerada: são 51 mil vagas, 80% em instituições privadas.
Esse cenário cria um desequilíbrio sério:
Superoferta de vagas
Baixa seleção
Endividamento dos estudantes
Precarização dos cursos
Judicialização de autorizações
Falta de infraestrutura clínica
Nesse contexto, alguns recém-formados buscam caminhos rápidos, lucrativos e sem rigor metodológico — terreno fértil para influenciadores da pseudociência.
A erosão da formação soma-se à assimetria cognitiva e ao dolo epistêmico, ampliando o risco à saúde pública.
6. Assimetria Cognitiva e Dolo Epistêmico: o núcleo da fraude
O ponto central deste artigo é simples e grave.
6.1 O que é assimetria cognitiva?
É a diferença natural entre o conhecimento técnico do médico e o conhecimento limitado do paciente.
6.2 O que é engano deliberado?
É quando o profissional:
sabe que não tem evidências;
ou sabe que seus dados são fracos;
ou sabe que a hipótese é apenas especulativa;
mas ainda assim vende a hipótese como verdade, obtendo lucro.
6.3 A fusão perigosa
Quando alguém explora essa diferença de conhecimento para induzir erro, temos:
fraude epistêmica,
violência cognitiva,
manipulação informacional,
e potencial enquadramento penal.
O jaleco, símbolo de confiança, torna-se arma de persuasão.
7. Relevância penal: quando a pseudociência vira crime
Do ponto de vista jurídico, as condutas descritas podem — em tese — enquadrar-se em:
Estelionato (art. 171 CP): venda de cura inexistente.
Charlatanismo (art. 283 CP): anunciar tratamento sem base científica.
Crime contra a economia popular: exploração de medo coletivo.
Curandeirismo (art. 284 CP): práticas terapêuticas não reconhecidas.
Infração sanitária (art. 268 CP): risco à saúde pública.
O denominador comum é o dolo epistêmico:o agente sabe que não possui evidências — e ainda assim as afirma.
8. A Hipótese Nula: o escudo da ciência contra charlatões
A MBE opera sempre a partir da premissa:
H₀: o tratamento não funciona até prova robusta em contrário.
Isso significa que:
alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias;
mecanismos hipotéticos não bastam;
opiniões individuais não têm peso científico;
hipóteses não testadas não podem ser vendidas como cura.
Pseudociências prosperam porque ignoram sistematicamente a hipótese nula.
9. Conclusão: restaurar o pacto civilizatório da evidência
O que o Estadão, a Folha e o Valor revelam — cada um em seu campo — é que o Brasil vive um momento de:
erosão da confiança social na ciência;
precarização acelerada da formação médica;
expansão comercial de pseudociências;
exploração da vulnerabilidade cognitiva da população;
transformação da desinformação em modelo de negócio.
A pergunta que resta é simples e urgente:
Como proteger a sociedade quando o conhecimento técnico é transformado em arma?
A resposta exige:
rigor na formação;
regulação efetiva;
punição a fraudadores;
educação científica básica;
responsabilidade jornalística;
e a defesa intransigente da hipótese nula como fundamento civilizatório.
Se falharmos nisso, veremos surgir um país onde qualquer um pode inventar síndromes, criar dragões imaginários e vender escudos mágicos —e onde a ciência será apenas mais uma opinião no mercado barulhento da pós-verdade.
Bibliografia
ALENCAR, José Nunes de. Manual de Medicina Baseada em Evidências. 2. ed. Barueri: Manole, 2023.
O ESTADO DE S. PAULO. Pseudociência como negócio. Editorial, 24 nov. 2025.
FOLHA DE S. PAULO. GUALANO, Bruno. A nova empreitada antivax. Coluna, 25 nov. 2025.
VALOR ECONÔMICO. KOIKE, Beth. Curso de medicina tem nova onda de liminares. 25 nov. 2025.

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