A Toga, o Turbante e o Silogismo: A "Jihad Racional" de Averróis na Construção do Direito
- gleniosabbad
- 30 de nov.
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Por Glenio S. Guedes ( advogado )
Introdução: O Juiz Diante da Poética
Em um de seus contos mais célebres e intelectualmente provocativos, A Busca de Averróis, Jorge Luis Borges imagina o filósofo andaluz Abú Walid ibn Rusd (Averróis, 1126-1198) trancado em sua biblioteca em Córdoba, lutando contra um abismo cultural. Averróis tentava comentar a Poética de Aristóteles, mas esbarrava em dois termos gregos intraduzíveis para a tradição islâmica, que desconhecia o teatro: "tragédia" e "comédia". Borges narra o fracasso do filósofo que, sem nunca ter visto uma peça, define tais conceitos como meras formas de "repreensão" e "elogio".
Contudo, uma leitura mais atenta, informada pela moderna islamologia e pela epistemologia jurídica, revela que Borges subestimou o magistrado cordobês. Ao interpretar a tragédia como a arte de repreender vícios e a comédia como a arte de elogiar virtudes, Averróis não cometeu um erro literário; ele operou uma tradução jurídica. Onde o poeta via drama, o Juiz Supremo (Qadi al-jama) via a Lei. Para ele, a função da palavra pública — fosse ela poética ou legal — era a regulação ética da pólis.
Este episódio ilustra a tese central que permeia a vida e a obra de Averróis: não houve nele uma "dupla verdade" ou uma esquizofrenia entre o fiel e o racionalista. Houve, sim, um esforço monumental de um homem de Estado, médico e juiz para unificar a Sharia (Lei Divina) e a Hikma (Sabedoria/Filosofia) sob a égide de um único método demonstrativo. Averróis empreendeu o que podemos chamar de uma "Jihad Racional": o esforço supremo para salvar o Direito Islâmico do arbítrio dos teólogos e do literalismo cego, utilizando a lógica aristotélica como ferramenta processual.
I. O Encontro em Marrakech: A Política da Razão
Para compreender o método jurídico de Averróis, é imperativo situá-lo no tabuleiro político do século XII. O Al-Andalus vivia a transição traumática entre os Almorávidas — juristas rigoristas e formalistas — e os Almóadas, um movimento reformista que pregava o unitarismo divino e a pureza moral.
Foi nesse cenário, em 1168, que ocorreu o encontro decisivo em Marrakech. O jovem Averróis foi apresentado ao Califa almóada Abu Yaqub Yusuf pelo vizir e filósofo Ibn Tufayl. As crônicas narram a tensão do momento: o Califa, desejando testar a audácia intelectual de seu convidado, lançou a pergunta capital: "O que dizem os filósofos sobre o céu? É eterno ou criado?".
Averróis, ciente de que a resposta "errada" poderia custar-lhe a cabeça por heresia, hesitou. Mas o próprio Califa rompeu o silêncio citando Platão e Aristóteles, demonstrando que o poder político buscava na filosofia uma aliada. Aquele diálogo selou um pacto de Estado. O Califa encomendou a Averróis não apenas comentários às obras gregas, mas uma fundamentação racional para a teologia e o direito. O projeto averroísta nascia, portanto, como uma política pública: a aristocracia intelectual deveria usar a filosofia para dar estabilidade e coerência a uma sociedade dilacerada por interpretações religiosas conflitantes.
II. O Silogismo como Ferramenta Jurisdicional
A grande inovação de Averróis reside na sua metodologia. Como jurista, ele conhecia profundamente o Qiyas, o raciocínio por analogia utilizado no Direito Islâmico para estender as regras do Alcorão a casos novos. No entanto, Averróis percebeu que a analogia jurídica tradicional era frágil, baseada muitas vezes em semelhanças superficiais.
Sua proposta foi revolucionária: elevar o Qiyas jurídico ao status de Silogismo Demonstrativo (Burhan). Em sua obra Discurso Decisivo, ele argumenta que a Lei Divina não apenas permite, mas obriga o estudo da lógica. Se o jurista deve "considerar" (i'tibar) a criação para entender a vontade do Criador, e se "considerar" nada mais é do que deduzir o desconhecido a partir do conhecido, então o jurista deve dominar o silogismo.
Averróis estabeleceu uma hierarquia cognitiva clara para a aplicação da Lei:
Retórica: Destinada ao vulgo (o povo), que deve ser persuadido por imagens e exemplos simples para manter a ordem social.
Dialética: O terreno dos teólogos (Mutakallimun), que Averróis desprezava por gerarem ambiguidade e discórdia com argumentos apenas prováveis.
Demonstração: A esfera do Filósofo-Juiz. Apenas este, armado com a lógica aristotélica, é capaz de alcançar a certeza (Yaqin) e compreender a intenção profunda (Maqasid) do Legislador Divino.
III. O Juiz como Médico da Sociedade
A análise de sua biografia intelectual revela outro pilar de seu pensamento: a Medicina. Averróis era médico da corte ao mesmo tempo em que era magistrado. Essa dupla função não era coincidente, mas estrutural. Em seus escritos, ele frequentemente utiliza o "paradigma médico" para explicar a função do Direito.
Assim como o médico diagnostica uma patologia observando os sintomas particulares para aplicar uma cura baseada em princípios universais da biologia, o juiz deve observar o caso concreto (fatwa) à luz dos princípios universais da Justiça. Para Averróis, o fanatismo, a interpretação literalista que ignora o espírito da lei e a ambiguidade teológica (Mutashabih) são "doenças" do corpo social.
O verdadeiro jurista, portanto, é o clínico que usa a razão para extirpar a ambiguidade. Quando o texto sagrado parece contradizer a razão (como nos antropomorfismos de Deus), o jurista tem o dever de interpretá-lo alegoricamente. A verdade não pode contradizer a verdade; logo, a Sharia (Verdade Revelada) e a Filosofia (Verdade Racional) são, nas palavras do próprio Averróis, "irmãs de leite".
IV. A Justiça Natural e a Prática do Julgamento
Em sua monumental obra jurídica, Bidaya al-Mujtahid ("O Início para o Jurista que se Esforça"), Averróis aplica essa teoria na prática. Ao comentar a Ética a Nicômaco, ele faz uma distinção vital para a filosofia do direito: a diferença entre Justiça Legal (Nomikon) e Justiça Natural (Physikon).
A Justiça Legal é convencional e variável (como os ritos de culto ou as quantias de multas), mas a Justiça Natural é universal e necessária (como a equidade e a preservação da vida). Averróis sustenta que o Direito Positivo islâmico é a melhor manifestação histórica da Justiça Natural. Contudo, para que a lei permaneça justa, ela não pode ser aplicada de forma mecânica.
O juiz averroísta deve ser um Mujtahid — aquele que empreende o esforço interpretativo. Ele rejeita a imitação cega (Taqlid) dos precedentes. Para ele, julgar é um ato de criação intelectual contínua, onde o magistrado conecta a norma eterna às circunstâncias mutáveis do mundo físico, garantindo que a decisão final respeite a ordem natural das coisas.
Conclusão: O Exílio e o Legado
A tragédia pessoal de Averróis, contudo, foi o reflexo da fragilidade de seu projeto político. No final do século XII, pressionado pela guerra contra os reinos cristãos e precisando do apoio das massas conservadoras, o Califa sacrificou seu intelectual favorito. Averróis foi acusado de "cultivar a sabedoria dos antigos" em detrimento da fé, teve seus livros de filosofia queimados em praça pública e foi exilado para Lucena, uma cidade de maioria judaica — um banimento simbólico da comunidade dos crentes.
O exílio de Averróis marcou, simbolicamente, o "fechamento das portas do Ijtihad" (o raciocínio independente) no mundo sunita tradicional, que passou a privilegiar a tradição sobre a especulação racional. Ironicamente, foi o Ocidente latino que acolheu o "Averroísmo". A Europa medieval e renascentista adotou a sua leitura de Aristóteles, integrando-a na base do pensamento jurídico ocidental.
Ao olharmos hoje para a figura de Averróis, vemos mais do que um comentador. Vemos o arquétipo do jurista ideal: aquele para quem a Toga não é um manto de autoridade dogmática, mas um instrumento de investigação racional. Para Averróis, a justiça não era apenas obedecer a Deus; era, acima de tudo, o ato supremo de compreender a inteligência do mundo.
Referências Bibliográficas
BENMAKHLOUF, Ali. Averróis. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2006. (Coleção Figuras do Saber).
BENMAKHLOUF, Ali. Pourquoi lire les philosophes arabes: L'héritage oublié. Paris: Albin Michel, 2015.
MARTÍNEZ LORCA, Andrés. Averroes, el sabio cordobés que iluminó Europa. Córdoba: Editorial Almuzara / El Páramo, 2010.
PACHECO, Juan Antonio. Averroes: Una biografía intelectual. Córdoba: Editorial Almuzara, 2010.

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