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A Sobrevivência do Romanche é a Vitória da Transdisciplinaridade Aplicada: Direito, Política, Linguística e Ética da Convivência em Ação

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    gleniosabbad
  • 2 de nov.
  • 7 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )


« La langue de l’Europe est la traduction » — Umberto Eco


Art. 4, Constitution fédérale de la Confédération suisse (1999): Les langues nationales sont l’allemand, le français, l’italien et le romanche.


1. A Constituição como pacto linguístico


O artigo 4.º da Constituição Federal da Confederação Suíça não é um ornamento jurídico, mas o símbolo operativo de uma ética política. Ao reconhecer quatro línguas nacionais — alemão, francês, italiano e romanche — o texto constitucional afirma que a unidade da Suíça não se apoia na uniformidade, mas na convivência jurídica das diferenças.

Negligenciar a proteção do romanche, portanto, não é simples omissão cultural: é violação constitucional, porque cada idioma nacional é depositário de uma forma de racionalidade e de um modo de vida. Em termos de filosofia do direito, a língua é o meio através do qual a norma se humaniza; e, na Suíça, o pluralismo linguístico é o modo pelo qual o direito se torna transdisciplinar, integrando cultura, território e memória.


2. O “casamento de razão” e a racionalidade comunicativa


Em Mariage de raison – Romands et Alémaniques : une histoire suisse (Éditions Zoé, 2015), Christophe Büchi explica que a Confederação é fruto de um casamento de razão, não de paixão. As comunidades germânica e romanda, bem como italianos e romanches, aceitaram viver sob o mesmo teto político, conscientes das diferenças.

Esse mariage é a metáfora perfeita do federalismo comunicativo: cada parte conserva sua voz, mas aprende a ouvir a outra. Büchi descreve a Suíça como uma “Helvetia mediatrix”, mediadora entre as Europas latina e germânica — um país cuja coesão depende da tradução permanente entre mundos culturais.

Assim, o multilinguismo não é um desafio administrativo, e sim um método de razão pública, semelhante ao conceito habermasiano de ação comunicativa: o consenso nasce do diálogo, não da força.


3. “Parlons Romanche”: a língua como resistência e criação


Em Parlons Romanche : la quatrième langue officielle de la Suisse (L’Harmattan, 2007), Dominique Stich apresenta a geografia linguística dos Grisões e o delicado ecossistema que sustenta o romanche. Cinco variantes principais — Sursilvan, Sutsilvan, Surmiran, Puter e Vallader — formam uma constelação de dialetos intercomunicantes, unificados parcialmente pelo Rumantsch Grischun de Heinrich Schmid (1982).

Stich mostra que o romanche é um idioma de montanha e de mediação, herdeiro do latim vulgar e das línguas réticas pré-romanas, permeado por léxico alemão e italiano. Sua fonética suave e morfologia flexível espelham a cultura da adaptação: um idioma nascido do cruzamento e da escuta.

Proteger o romanche é preservar uma epistemologia da diversidade — uma forma de saber enraizada na reciprocidade, que torna concreto o princípio constitucional da proporcionalidade linguística.


4. “Les mots sont apatrides”: a língua como hospitalidade e resistência


A reflexão ganha densidade contemporânea com Romain Filstroff, autor de Les Mots sont apatrides (Slatkine & Cie, 2023) e criador do canal Linguisticae. Filstroff sustenta que as palavras não têm pátria: elas pertencem àqueles que as pronunciam e transformam. A língua, portanto, é um espaço de passagem, um território compartilhado pela tradução.

Essa visão ressoa com o ideal suíço: ao reconhecer quatro idiomas oficiais, a Confederação institucionaliza a hospitalidade linguística. Traduzir não é trair, mas manter o outro vivo em si. Filstroff afirma que cada vocábulo migrante — assim como o romanche — encarna o movimento da cultura, a negociação entre pertencimento e liberdade. O plurilinguismo, longe de fragmentar, humaniza a linguagem do direito, porque impede que a norma se feche sobre um único ponto de vista.


5. O federalismo linguístico como transdisciplinaridade em ato


A interação entre Büchi, Stich e Filstroff permite compreender o federalismo suíço como um sistema transdisciplinar, em que direito, política, linguística e ética se articulam de modo circular:


  • O direito consagra o reconhecimento mútuo das línguas (arts. 4 e 70 da Constituição).

  • A política cria instrumentos de promoção e ensino bilíngue, fomentando o Rumantsch Grischun e as mídias regionais.

  • A linguística documenta e revitaliza as variantes, assegurando a continuidade da oralidade.

  • A ética da convivência sustenta o todo, lembrando que a diversidade não é obstáculo, mas fundamento da coesão.


Trata-se de um modelo de complexidade positiva, no sentido de Edgar Morin (La Méthode VI – Éthique, 2004): a unidade emerge do entrelaçamento das diferenças. O federalismo linguístico suíço é, portanto, um dispositivo epistemológico, que demonstra como sistemas heterogêneos podem cooperar sem se dissolver.


6. Direito e dever de preservar


A Constituição impõe à Confederação e aos cantões a tarefa de proteger e promover o multilinguismo. Negligenciar o romanche seria uma inconstitucionalidade por omissão, pois significaria romper o equilíbrio federativo que garante a legitimidade do Estado. Mais que um dever administrativo, trata-se de uma obrigação ética: cada língua minoritária é um sujeito coletivo de direitos, portador de uma herança simbólica irrepetível.

Preservar o romanche é também preservar a possibilidade de futuro da Suíça como nação dialogal. A destruição de uma língua, lembra Filstroff, é a destruição de um modo de pensar. E a Constituição helvética, ao elevar as línguas à categoria de “nacionais”, reconhece que pensar pluralmente é dever jurídico.


6-A. Medidas necessárias para garantir a sobrevivência do romanche


Em Parlons Romanche, Dominique Stich adverte que a vitalidade de uma língua minoritária depende menos do número de falantes e mais da qualidade da sua presença pública. O romanche, escreve ele, “ne meurt pas d’être petit, mais d’être invisible”. A invisibilidade — e não a minoria — é o verdadeiro perigo.

Para impedir o desaparecimento do idioma, Stich propõe uma política linguística de integração prática e afetiva, que pode ser sistematizada em cinco eixos complementares:


  1. Educação plurilíngue e formação docente especializada. As escolas dos Grisões devem garantir o ensino primário em romanche, com verdadeira imersão — não como disciplina marginal. É imperativo investir na formação de professores bilíngues e trilingues, e criar materiais didáticos modernos. O aprendizado precoce gera pertencimento afetivo e consciência cidadã.

  2. Presença digital e tecnológica. Stich antecipa o que hoje é evidente: uma língua ausente do espaço digital está condenada à extinção. É urgente expandir o uso do romanche em plataformas virtuais, sistemas operacionais, tradutores automáticos, assistentes de voz e bases de dados de IA generativa.Incorporar o romanche no universo tecnológico é assegurar-lhe um futuro cognitivo.

  3. Mídia e cultura romanchófonas. O idioma deve ser voz e rosto. A existência de La Quotidiana e da Radiotelevisiun Svizra Rumantscha é essencial, mas precisa ser acompanhada de novas formas culturais: cinema, teatro, música, literatura jovem e digital. Uma língua só sobrevive quando é objeto de criação, não apenas de preservação.

  4. Visibilidade simbólica e uso institucional. A presença do romanche nas repartições públicas, nas placas bilíngues e nos discursos oficiais deve ser fortalecida. O uso estatal do idioma é um gesto performativo de legitimação constitucional: “une langue qu’on ne voit pas est une langue qu’on oublie”.

  5. Cooperação rético-românica e financiamento contínuo. O futuro do romanche passa por alianças com o ladino dolomítico e o friulano, formando um eixo rético-romano transnacional. Para isso, a Lia Rumantscha necessita de financiamento público estável e garantido, conforme o art. 70 da Constituição, que impõe ao Estado o dever de “promover o entendimento e a preservação do plurilinguismo”.


Essas medidas dão corpo àquilo que a Constituição enuncia como princípio: a igual dignidade constitucional das línguas nacionais. Ignorá-las seria permitir que o romanche sobrevivesse apenas como relíquia — uma língua litúrgica, e não vivida. A verdadeira preservação não consiste em arquivar, mas em atualizar; em fazer da memória um ato de presente.


7. A transdisciplinaridade aplicada: o método helvético


A Suíça é, de fato, um laboratório vivo da transdisciplinaridade aplicada. Seu cidadão médio, poliglota por necessidade, pratica diariamente o que Morin define como “inteligência da complexidade”: integrar saberes e comunicar diferenças.

O Estado atua como mediador — um tradutor institucional. As escolas bilíngues formam consciência intercultural; o Parlamento multilingue encarna a polifonia da soberania; e o pequeno romanche lembra que a identidade, para ser verdadeira, deve permanecer aberta.

Assim, a transdisciplinaridade não é um conceito abstrato, mas um método de governo e convivência. O direito, a política e a linguística fundem-se numa ética da tradução: a arte de transformar conflito em coabitação.


8. Conclusão: o direito de existir em tradução


A sobrevivência do romanche é mais do que um caso cultural: é uma lição civilizatória. Ela demonstra que o pluralismo pode ser jurídico, que a diversidade pode ser organizada e que a tradução é forma de paz.


“Le multilinguisme, c’est l’idée suisse par excellence… Il permet de jouer un rôle de médiation entre l’Europe et le monde.”— Christophe Büchi, Mariage de raison, p. 411.

No século da uniformização digital, a mensagem helvética é clara: a diferença é a nova racionalidade. O romanche sobrevive porque traduz e é traduzido; porque não teme o outro; porque, como as palavras de Filstroff, é apátrida e, portanto, universal.

Proteger o romanche é cumprir a Constituição e honrar a ética da convivência que sustenta a própria ideia de Europa: uma comunidade fundada na tradução, na escuta e no reconhecimento recíproco.


“Les mots sont apatrides”, lembra Filstroff — e é nessa apatridia das palavras que se funda a verdadeira pátria da convivência.

Post scriptum


Enquanto este artigo celebrava o exemplo suíço de convivência linguística, o Parlamento do Cantão de Zurique aprovava uma moção para adiar o ensino do francês nas escolas primárias. A ironia é deliciosa: o país que protege o romanche em sua Constituição discute se suas crianças ainda devem aprender a língua de Molière antes da adolescência.

A ministra Elisabeth Baume-Schneider advertiu que “o aprendizado das línguas nacionais não é algo simpático, mas parte essencial do nosso viver juntos”. Tem razão. Quando uma nação começa a empurrar suas línguas nacionais para o ensino secundário, empurra também seu espírito republicano para a puberdade.

Se o romanche sobrevive entre as montanhas, resistirá o francês nas planícies de Zurique? A pergunta parece absurda — mas talvez toda língua, até a mais forte, viva sob suspeita. A diversidade linguística não se perde de um golpe; dissolve-se aos poucos, entre moções parlamentares e horários escolares.

No fim, talvez o romanche, tão pequeno e teimoso, continue a ensinar aos grandes cantões que a fidelidade às palavras é a forma mais nobre de inteligência política.


Referências


  • BÜCHI, Christophe. Mariage de raison : Romands et Alémaniques : une histoire suisse. Carouge-Genève : Éditions Zoé, 2015 (2ᵉ éd.).

  • Radio Télévision Suisse (RTS Info). Le canton de Zurich veut supprimer le français à l’école primaire. RTS Info, 2 septembre 2025. Consulté sur: https://www.rts.ch/info

  • STICH, Dominique. Parlons romanche : la quatrième langue officielle de la Suisse : le romanche-grison et les variétés romanches. Paris : Éditions L’Harmattan, 2007.

  • FILSTROFF, Romain (RF Monté). Les mots sont apatrides. Genève : Slatkine & Cie, 2023.

  • CONSTITUTION FÉDÉRALE DE LA CONFÉDÉRATION SUISSE (18 avril 1999), arts. 4 et 70.

  • ECO, Umberto. Dire quasi la même chose – Expériences de traduction. Paris : Grasset, 2003.

  • MORIN, Edgar. La Méthode VI – Éthique. Paris : Seuil, 2004.

  • FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Metodologia Jurídica – Iniciação e Dicionário. Edições Almedina, 2021.


 
 
 

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