A Reforma Tributária como Portal Transdisciplinar: o Encontro Irreversível entre Direito e Contabilidade
- gleniosabbad
- 12 de out.
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Glênio Sabbad Guedes (advogado)
Ex facto oritur ius.
A cada novo fato — contábil, econômico ou informacional — nasce um direito correspondente. E quando o fato se torna dado, o Direito se converte em linguagem viva da complexidade.
1. A Reforma Tributária como acontecimento epistemológico
Há reformas que alteram normas, e há reformas que alteram a estrutura cognitiva do próprio Direito. A brasileira, consubstanciada na Emenda Constitucional nº 132/2023, pertence a esta segunda categoria. Ela não é apenas uma reordenação tributária: é um acontecimento epistêmico — um deslocamento de paradigma que funde, pela primeira vez de forma explícita, o pensamento contábil e o pensamento jurídico em uma ecologia de interdependência.
Ao instituir o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), o legislador desenhou um sistema cuja operacionalidade depende integralmente da linguagem contábil, da automatização informacional e da retroalimentação algorítmica. Com isso, dissolveu-se a antiga fronteira entre o “fato jurídico tributário” e o “fato contábil”, inaugurando um espaço híbrido, recursivo e transdisciplinar, em que o registro é o próprio ato jurídico.
Se antes a contabilidade servia para provar o Direito, agora o Direito nasce dentro da contabilidade.
2. A contabilidade como linguagem fundante do novo Direito Tributário
Nos artigos recentes de Édison Fernandes e Eduardo Salusse, publicados no Valor Econômico, encontramos os sinais mais nítidos dessa mutação. Fernandes identifica três “barreiras” históricas rompidas pela contabilidade dentro do direito tributário:
(1) a dos tributos diretos,
(2) a do contencioso, e
(3) a dos tributos indiretos, agora incorporados pelo IBS/CBS.
Cada uma dessas etapas simboliza a substituição de um paradigma disciplinar por outro mais complexo. A contabilidade, antes periférica, torna-se o próprio lócus de produção normativa. E o jurista, outrora leitor de textos, passa a ser leitor de balanços e bases de dados, pois é ali — e não mais no papel — que o Direito se realiza.
Salusse, por sua vez, revela o coração técnico desse novo sistema: a Nota Fiscal Eletrônica, elevada ao estatuto de ato-fato jurídico digital. Ela não apenas documenta o evento econômico — ela o constitui. Cada emissão é um microcosmo de juridicidade, em que os campos contábil, tecnológico e normativo se fundem em uma só operação semântica.
Nessa lógica, a NF-e torna-se o símbolo do Direito performativo, que deixa de ser enunciado textual para se tornar ato informacional com efeitos imediatos. O Direito, nesse sentido, passa a existir não apenas “em linguagem”, mas como linguagem — linguagem contábil, algorítmica e autorreferente.
3. A transdisciplinaridade como método de compreensão
Essa integração não pode ser lida com categorias clássicas. É preciso recorrer à transdisciplinaridade, no sentido formulado por Basarab Nicolescu e desenvolvido por Edgar Morin. Não se trata de somar saberes (como faria a interdisciplinaridade), mas de permitir o trânsito ontológico entre níveis distintos de realidade: o jurídico, o contábil e o tecnológico.
A Reforma Tributária, assim, não é apenas uma lei econômica — é uma mutação do modo de conhecer. Ela revela que o Direito já não pode operar isolado, pois o tributo contemporâneo é uma entidade híbrida, que só existe na convergência entre a norma, o número e o dado.
No paradigma transdisciplinar:
o contador deixa de ser mero executor técnico e se torna coautor da norma;
o jurista deixa de interpretar apenas textos e passa a interpretar fluxos de informação;
e o Estado deixa de ser um ente que tributa de fora e passa a agir de dentro dos sistemas de informação, numa presença permanente e ubíqua.
É o advento do Estado-Algoritmo, cuja jurisdição fiscal é exercida por meio da retroalimentação de dados.
4. Ecos da Quinta Revolução Industrial: o humano no centro da automação
A convergência entre Direito e Contabilidade, acelerada pela Reforma, encontra paralelo conceitual no debate internacional sobre a Quinta Revolução Industrial, explorado no Congresso Colombiano “La 5ª Revolución Industrial y la Administración de la Justicia” (Bogotá, 2024). Ali, juristas e cientistas sociais discutiram a emergência de uma nova etapa civilizatória — humanocêntrica, cooperativa e ética — na qual a interação homem-máquina redefine o próprio significado de justiça.
O texto La Administración de Justicia en la Quinta Revolución Industrial, de Sebastián Builes, propõe a criação de um “ciberespaço judicial”: um ambiente virtual de validade plena, onde a jurisdição se exerce mediante atos digitais assistidos por inteligência artificial. O paralelo é direto: o Brasil caminha para a formação de um ciberespaço fiscal, onde a tributação se realiza em rede, por autocomposição algorítmica supervisionada.
Da mesma forma que a Colômbia moderniza sua Justiça com apoio do BID e planos estratégicos digitais, o Brasil aproxima-se de um modelo em que o fisco digital opera como extensão da contabilidade, e o ato contábil é reconhecido como manifestação jurídica imediata.
Assim como o juiz colombiano aprenderá a decidir com algoritmos, o auditor fiscal e o jurista brasileiro aprenderão a decidir com dados — uma metamorfose que desloca o Direito do campo da certeza textual para o da interpretação informacional.
5. A apuração assistida e o colapso das temporalidades jurídicas
A apuração assistida — prevista para o sistema do IBS/CBS — representa, ontologicamente, o colapso das temporalidades jurídicas. O modelo do lançamento por homologação, fundado em três tempos (fato, declaração e homologação), cede lugar à sincronicidade informacional: o tributo nasce no mesmo instante em que o dado é emitido.
Estamos diante de um fenômeno análogo ao da física quântica: o ato de observar (registrar contabilmente) cria o próprio fato jurídico. A observação não é neutra — é constitutiva. Assim, o ex facto oritur ius transforma-se em ex dato oritur ius: do dado nasce o Direito.
Essa instantaneidade altera radicalmente o papel da hermenêutica: não se trata mais de interpretar o fato passado, mas de prever e parametrizar o futuro. A norma torna-se preventiva e preditiva — um código de comportamento que, ao mesmo tempo, descreve e cria a realidade fiscal.
6. O novo ethos da juridicidade: ética, explicabilidade e responsabilidade
A experiência colombiana também adverte que o avanço tecnológico só é legítimo se acompanhado de ética e explicabilidade. A UNESCO e a União Europeia, em suas Recomendações sobre Inteligência Artificial, impõem princípios de transparência, rastreabilidade e controle humano significativo — os mesmos que devem orientar a transição fiscal brasileira.
A apuração automática do IBS e da CBS, se não for eticamente concebida, corre o risco de converter-se num direito algorítmico sem alma. Por isso, a Reforma Tributária precisa ser lida como ato jurídico-ético, em que a integração entre Contabilidade e Direito não é apenas técnica, mas axiológica.
A transdisciplinaridade cumpre aqui função salvadora: ela devolve o humano ao centro da equação. Enquanto a contabilidade se torna a linguagem do Direito e o algoritmo, seu novo escriba, é a consciência ética do jurista que deve continuar sendo o seu intérprete e guardião.
7. Uma nova ecologia jurídica: o Direito da informação e do valor
O que se desenha, no horizonte pós-Reforma, é o nascimento de uma ecologia jurídica da informação e do valor. Nela, o sistema tributário deixa de ser um conjunto de leis para se tornar uma rede cognitiva. Os dados contábeis funcionam como moléculas normativas, circulando entre empresas, Receita e sociedade. O Estado, por sua vez, não interpreta — ele aprende, recalibra-se, e retroage sobre os próprios contribuintes, num circuito permanente de feedback normativo.
Esse modelo recursivo aproxima-se da ideia de sistemas socio-técnicos da Indústria 5.0 (De Val Pardo, AECA 2021): não há mais separação entre o humano e o tecnológico, mas coexistência interdependente. A contabilidade torna-se, assim, o genoma do Direito Fiscal, e o Direito, a expressão reflexiva da racionalidade contábil.
8. Conclusão: o jurista do futuro e a refundação da hermenêutica tributária
Estamos diante de um ponto de não retorno. A Reforma Tributária brasileira é a mola propulsora de uma integração sem volta entre Contabilidade e Direito. Ela marca o nascimento de uma nova ontologia jurídica — informacional, recursiva e sistêmica.
O jurista do futuro não será apenas intérprete de normas, mas hermeneuta de dados; o contador não será apenas executor de registros, mas codificador de juridicidade. Ambos, juntos, formarão o núcleo de uma nova ciência: o Direito Transdisciplinar da Informação e do Valor — onde o tributo é simultaneamente signo, ato e algoritmo.
No fim, compreender a Reforma Tributária é compreender que o Direito, como a própria realidade contemporânea, já não cabe em compartimentos estanques. Ele se tornou, enfim, o que sempre foi em potência:
uma linguagem viva da complexidade, onde o fato contábil, o dado digital e a norma jurídica são expressões diferentes da mesma realidade recursiva.
📚 Referências Bibliográficas
1. Fontes normativas
BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 out. 2025.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Reforma Tributária – Regulamentação. Brasília, DF, 2025. Disponível em: https://www.fazenda.gov.br. Acesso em: 12 out. 2025.
2. Obras teóricas e epistemológicas
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.
NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. 3. ed. São Paulo: Triom, 1999.
ÁVILA, Humberto. Teoria da indeterminação no Direito. São Paulo: Malheiros, 2022.
3. Artigos de jornal (Valor Econômico – dados confirmados)
FERNANDES, Édison. A contabilidade rompe a terceira barreira do Direito Tributário. Valor Econômico, caderno Legislação & Tributos, São Paulo, 29 set. 2025, p. A3.
SALUSSE, Eduardo. Nota Fiscal: o elo principal para a apuração assistida da CBS e do IBS. Valor Econômico, caderno Legislação & Tributos, São Paulo, 25 set. 2025, p. A4.
FERNANDES, Édison. A Reforma Tributária na Contabilidade. Valor Econômico, caderno Legislação & Tributos, São Paulo, 15 abr. 2025, p. A3.
4. Produções acadêmicas e institucionais colombianas
BUILES G., Sebastián. La administración de justicia en la quinta revolución industrial. In: La 5ª Revolución Industrial y la Administración de la Justicia. Bogotá: [s.n.], 2024.
DÍAZ CANALES, Ignacia. Los desafíos de la quinta revolución industrial para el derecho de acceso a la justicia. In: La 5ª Revolución Industrial y la Administración de la Justicia. Bogotá: [s.n.], 2024.
SUAZA VARELA, Tatiana. ¿Hacia un nuevo sistema procesal? Reflexiones en el contexto de la quinta revolución industrial. In: La 5ª Revolución Industrial y la Administración de la Justicia. Bogotá: [s.n.], 2024.
PALOMINO CORTÉS, César. Tecnología que asiste, no que decide. In: La 5ª Revolución Industrial y la Administración de la Justicia. Bogotá: [s.n.], 2024.
5. Diretrizes internacionais e éticas
UNESCO. Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence. Paris: UNESCO, 2021.
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REINO UNIDO. Ministry of Justice. AI and Data Science Ethics Framework. Londres, 2025.
6. Complementares (contexto da Indústria 5.0)
DE VAL PARDO, Carlos. La industria 5.0: una visión europea sobre la integración entre la inteligencia artificial y el factor humano. AECA – Asociación Española de Contabilidad y Administración de Empresas, Madrid, 2021.
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