top of page

A Falência da Segurança Pública no Brasil: entre o colapso político, o subdesenvolvimento estrutural e a resignação continental

  • Foto do escritor: gleniosabbad
    gleniosabbad
  • 30 de out.
  • 8 min de leitura

Por Glênio S Guedes ( advogado )


1. Introdução: o espelho do colapso


A madrugada de 28 de outubro de 2025, marcada pela Operação Contenção nos complexos da Penha e do Alemão, simbolizou o colapso institucional da segurança pública brasileira. Com mais de cento e vinte mortos, a operação reiterou o que o país insiste em negar: o Estado perdeu o controle da violência e, com ele, o monopólio da autoridade legítima. A cada nova incursão, repete-se a mesma liturgia: discursos triunfais, imagens de blindados e a contabilidade trágica de vidas ceifadas. No dia seguinte, nada muda — o crime reorganiza-se, e o Estado recua.

A violência tornou-se o espelho onde o país se reconhece e se assusta. Os números, repetidos em estatísticas e relatórios, já não produzem indignação: tornaram-se rotina. A segurança pública, outrora promessa republicana, converteu-se em campo de guerra permanente, onde a política perdeu o controle sobre a força, e a força perdeu o controle sobre o sentido.


2. A semântica da dissolução: da segurança pública ao pântano do sentido


A crônica de Sérgio Rodrigues, publicada na Folha de S. Paulo sob o título “É assim que todos perdemos, playboys”, funciona como um texto-sintoma da crise semântica que atravessa a linguagem política brasileira. Rodrigues não apenas descreve o colapso da segurança pública; ele denuncia o colapso das palavras que a nomeiam. Em seu texto, a expressão segurança pública tornou-se paradoxal: segurança para quem? pública em que sentido? A linguagem — que deveria ordenar a experiência — passou a participar do desmoronamento da realidade.

A cada operação militar, o discurso oficial altera a gramática do país. Termos como pacificação, contenção, neutralização e baixa colateral não descrevem mais fatos; produzem realidades discursivas que autorizam a violência. A retórica do Estado cria uma semântica própria — uma espécie de léxico de exceção — que confunde a população, anestesia o debate público e reconfigura o sentido social das palavras. Assim, o que deveria nomear o direito à vida passou a nomear o direito de matar.

Trata-se do que poderíamos chamar, com Sérgio Rodrigues, de um pântano semântico: uma zona de instabilidade lexical na qual as palavras afundam sob o peso de seus próprios usos políticos. No pântano, os significados são viscosos, as fronteiras entre o literal e o eufemístico se dissolvem, e o Estado se refugia no poder mágico da nomeação. Em vez de governar os fatos, o governo governa as palavras. Como em 1984, de Orwell, o controle semântico antecede o controle social.

Esse fenômeno remete ao triângulo semântico clássico de Ogden e Richards (The Meaning of Meaning, 1923), que descrevia a relação entre símbolo, pensamento e referente. No Brasil contemporâneo, esse triângulo foi rompido: o símbolo (a palavra “segurança”) já não remete ao referente (a vida protegida), mas apenas à intenção política de quem o pronuncia. Cada governo impõe sua própria gramática — e, portanto, seu próprio mundo. O signo se torna instrumento de poder, não de comunicação.

O resultado é um Estado elusivo, onde a linguagem não revela, mas encobre; onde as categorias do discurso não correspondem mais às categorias da experiência. A expressão “segurança pública” — antes um ideal republicano — transformou-se num ato de fala performativo que mascara a ausência de política e a presença do medo.

Nesse cenário, o texto de Sérgio Rodrigues adquire valor hermenêutico: ele devolve à palavra o seu desconforto original, o de dizer o indizível. Ao denunciar a falência semântica do Estado, Rodrigues não fala apenas de segurança, mas da erosão da própria ideia de realidade compartilhada. Sem uma linguagem comum, não há pacto possível. O pântano semântico é, em última análise, o reflexo linguístico da falência do Estado.


3. O diagnóstico de Joana Monteiro: a ausência de comando civil


A economista Joana Monteiro, professora da FGV/EBAPE, afirmou em entrevista ao Valor Econômico que o Brasil vive um vácuo de liderança política na condução da segurança pública.

“Quem está decidindo são as duas estruturas policiais. Falta liderança civil.”

A constatação é contundente. Sem direção estratégica, o país se converteu em campo de experimentação de modelos policiais autônomos e desarticulados. Monteiro ressalta que o Executivo delegou à força o papel da razão: a política virou polícia.

“O Estado sai menos legítimo porque há muitos relatos de abuso.”

A legitimidade, observa a autora, exige mais que poder: exige confiança. E confiança não se constrói com fuzis. O uso político da violência — que Monteiro classifica como “gigantesco” — demonstra que a força pública deixou de ser instrumento de proteção e passou a ser recurso eleitoral.


4. O poder paralelo do crime e a perda do monopólio tecnológico


A análise de Rafael Vazquez, Alberto Kopittke, Bruno Paes Manso, Bruno Langeani e Natalia Pollachi amplia a compreensão da crise. O artigo de Vazquez, publicado no Valor Econômico, demonstra que as organizações criminosas brasileiras — sobretudo o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC) — apropriaram-se das inovações digitais e financeiras das últimas décadas para expandir seu poder econômico e bélico.

De acordo com o especialista Alberto Kopittke (2024), autor do Manual de Segurança Pública Baseada em Evidências, o Estado brasileiro opera às cegas:

“A maioria das ações policiais é implementada sem base empírica e sem avaliação de impacto, o que perpetua políticas ineficazes e onerosas.”

Kopittke defende uma segurança pública cientificamente orientada, baseada em dados verificáveis e análise de custo-benefício.

“O verdadeiro desafio brasileiro não é combater o crime, mas aprender com as evidências.”

Enquanto as facções utilizam criptomoedas, fintechs e plataformas de lavagem de dinheiro em tempo real, o Estado ainda depende de planilhas fragmentadas e relatórios manuais. O crime opera como empresa de alta tecnologia; o Estado, como uma burocracia do século XIX. Bruno Paes Manso (NEV-USP) lembra que, desde os anos 1990, o uso dos celulares e das criptomoedas redefiniu o alcance do crime, permitindo que “os chefes passassem a comandar suas redes de dentro dos presídios”.

A consequência é paradoxal: o Brasil possui uma das forças policiais mais armadas do continente, mas uma das administrações públicas mais desarmadas do ponto de vista intelectual. A tecnologia passou a ser o campo onde o crime inova, e o Estado, onde o atraso se repete.

Essa assimetria se agrava, como demonstram Bruno Langeani e Natalia Pollachi (2025) em artigo publicado no Journal of Illicit Economies and Development, intitulado Blind Fire: The Rise of Military-Style Firearms amid Regulatory Failures and Data Deficiency in Brazil. Os autores provam, com base em evidências empíricas, que o Estado perdeu também o controle sobre o fluxo e o perfil das armas que circulam em seu território. A circulação de armas de estilo militar (MSF) cresceu 33,7 % entre 2019 e 2023, sendo que a região Sudeste concentra 4,3 % de todas as apreensões nacionais. Essas armas, antes restritas às forças armadas, tornaram-se amplamente acessíveis a civis durante o governo Bolsonaro, alimentando o desvio de fuzis e submetralhadoras para o crime organizado. Segundo Langeani e Pollachi, o país carece de “transparência e capacidade de rastreamento”, o que perpetua políticas públicas cegas e inviabiliza qualquer diagnóstico do mercado ilícito de armas.

A pesquisa corrobora o diagnóstico de Kopittke: não há política pública eficaz onde não há dados confiáveis. Sem regulação, sem rastreabilidade e sem coordenação entre órgãos federativos, a segurança pública se converteu num labirinto institucional — um Estado armado, mas cego.


5. A ausência de política pública: o vácuo institucional


Para compreender a dimensão estrutural desse colapso, é indispensável recorrer à reflexão teórica de Geraldo Di Giovanni e Marco Aurélio Nogueira no Dicionário de Políticas Públicas (Unesp, 3ª ed., 2023). Os autores recordam que o termo “política pública” foi, até poucas décadas atrás, uma curiosidade no Brasil — uma importação conceitual sem tradução prática.

“O governar ficou oprimido por uma pressão que nasce espontaneamente do modo como se vive”, escreve Nogueira, sugerindo que o Estado brasileiro reage mais do que governa.

A falência da segurança pública é reflexo desse vazio metodológico. Sem planejamento, sem monitoramento e sem avaliação, o Estado atua como se improvisar fosse sinônimo de governar. A segurança, nesse contexto, não é política pública: é espetáculo administrativo.

O dicionário da Unesp propõe que políticas públicas são formas organizadas de intervenção estatal, que se definem pela continuidade, racionalidade e transparência. Nada disso se observa no setor da segurança. Cada novo governo substitui o anterior, e cada novo plano se perde no ciclo da urgência, o que gera a dispersão institucional da responsabilidade pública.


6. A contribuição de Bruce Mac Master: a resignação como patologia continental


A análise de Bruce Mac Master, presidente da ANDI e autor do ensaio El Continente de los Países Resignados, ilumina o fenômeno sob uma perspectiva latino-americana. Mac Master identifica um padrão de estagnação regional, no qual a ausência de políticas de longo prazo gera um sentimento coletivo de impotência.

“No tenemos estrategias de desarrollo suficientemente robustas, de largo plazo y amplias.”

Essa resignação, diz o autor, é o habitus político da América Latina: a convicção tácita de que o desenvolvimento é impossível. A consequência é devastadora: populações inteiras passam a tolerar o fracasso como normalidade e a violência como linguagem social.

Aplicado ao Brasil, o conceito de “resignação institucional” explica a indiferença cívica diante das chacinas, a repetição burocrática das tragédias e o uso sistemático da barbárie como instrumento de governo.

“No existen institucionalidades suficientemente fuertes que defiendan el desarrollo en forma confiable.”

Enquanto o crime organiza-se como empresa, o Estado latino-americano dissolve-se como rotina. A ausência de estratégia desenvolvimentista torna a repressão um gesto de impotência disfarçado de força.


7. Políticas públicas e pacto desenvolvimentista


Integrando as contribuições de Di Giovanni, Nogueira e Mac Master, torna-se evidente que a crise da segurança pública é inseparável da crise do planejamento estatal. Nenhuma polícia é eficaz em um país que não cresce, não educa e não redistribui. A violência, nesse sentido, é sintoma de subdesenvolvimento institucional.

Um novo pacto republicano exige o reconhecimento de que segurança pública é dimensão do desenvolvimento humano, e não mero problema policial. A refundação do Estado brasileiro deve prever:


  • a criação de um Conselho Nacional de Planejamento Estratégico, com mandatos intergeracionais;

  • o fortalecimento de um Sistema Nacional de Avaliação de Políticas de Segurança, nos moldes de uma Evidence-Based Policy;

  • e a vinculação orçamentária de políticas sociais, educacionais e urbanísticas às metas de segurança cidadã.


O Brasil precisa romper com a cultura da emergência e instituir a cultura da continuidade.


8. Da resignação à esperança estratégica


O diagnóstico de Mac Master — complementado por Monteiro, Kopittke, Langeani, Pollachi e Di Giovanni — permite transformar a denúncia em proposta. O continente dos países resignados pode deixar de ser o continente do desespero, desde que reaprenda a sonhar estrategicamente. Sonhar, neste contexto, é planejar com lucidez e perseverança. A verdadeira política de segurança é a política do desenvolvimento: educação, emprego, urbanismo e justiça social.

A esperança estratégica consiste em deslocar o eixo da força para a inteligência, e da repressão para a prevenção. Enquanto o Brasil não substituir o fuzil pelo dado e o improviso pela evidência, continuará confundindo barulho com governo e morte com autoridade.


Conclusão


A falência da segurança pública brasileira é, em última instância, a falência do Estado como projeto de futuro. O colapso da política, a obsolescência da administração e a resignação social convergem para um mesmo resultado: a naturalização da barbárie. Mas há saídas — e elas começam pela reconstrução do Estado como instituição de racionalidade, evidência e planejamento. O caminho para a paz pública não se faz com operações, mas com institucionalidade democrática e visão de longo prazo.

Somente quando o Brasil deixar de reagir e começar a planejar, quando trocar a retórica da guerra pela gramática da cidadania, será possível dizer que a segurança pública deixou de ser um campo de batalha para se tornar, finalmente, um direito humano efetivo.


Referências


  • DI GIOVANNI, Geraldo; NOGUEIRA, Marco Aurélio (orgs.). Dicionário de Políticas Públicas. 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2023.

  • KOPITTKE, Alberto. Manual de Segurança Pública Baseada em Evidências: o que funciona e o que não funciona na prevenção da violência. Rio de Janeiro: Autografia, 2024.

  • LANGEANI, Bruno; POLLACHI, Natalia. Blind Fire: The Rise of Military-Style Firearms amid Regulatory Failures and Data Deficiency in Brazil. Journal of Illicit Economies and Development, v. 7, n. 1, p. 72–89, 2025. DOI: 10.31389/jied.300.

  • MAC MASTER, Bruce. El Continente de los Países Resignados. Bogotá: ANDI, 2023.

  • MONTEIRO, Joana. Entrevista. Valor Econômico, 29 out. 2025.

  • PAES MANSO, Bruno. A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.

  • RODRIGUES, Sérgio. “É assim que todos perdemos, playboys.” Folha de S. Paulo, 28 out. 2025.

  • VAZQUEZ, Rafael. “Criminalidade obtém poderio financeiro e armas com uso de tecnologia.” Valor Econômico, 30 out. 2025.


 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Por um ensino rizomático e transversal do Direito

Por Glênio S Guedes ( advogado ) 1. O direito e o risco da repetição Durante séculos, o ensino jurídico foi construído sobre o paradigma da árvore: raízes profundas, troncos hierárquicos e galhos prev

 
 
 

Comentários


bottom of page