A Alma da Lei: Um Diálogo Transdisciplinar Imaginado
- gleniosabbad
- 10 de out.
- 4 min de leitura
Por Glênio Sabbad Guedes ( advogado )
Resumo: O que é um conceito jurídico? É uma norma estável, um sedimento histórico, uma crença socialmente partilhada ou uma estrutura cognitiva? Este artigo propõe um diálogo imaginado entre quatro interlocutores: o próprio Direito, personificado como uma disciplina em busca de autocompreensão, e três das mais influentes teorias do século XX sobre linguagem, sociedade e história. Reinhart Koselleck, Serge Moscovici e George Lakoff são convidados a apresentar suas ferramentas para iluminar a natureza multifacetada dos conceitos que estruturam o pensamento e a prática jurídica.
Personagens:
O Direito: Uma disciplina que se orgulha de sua lógica, rigor e estabilidade normativa.
Reinhart Koselleck: Historiador dos conceitos.
Serge Moscovici: Psicólogo das representações sociais.
George Lakoff: Linguista cognitivo da metáfora.
(A cena: uma biblioteca atemporal. O Direito, em vestes sóbrias, parece inquieto.)
O Direito: Cavalheiros, eu os convoquei porque me sinto em crise. Apresento-me ao mundo como um sistema de normas claras, um edifício de definições precisas e de lógica dedutiva. No entanto, a sociedade constantemente me interpreta mal, me distorce, me resiste. Meus conceitos, como ‘Justiça’, ‘Propriedade’ ou ‘Liberdade’, que eu laboriosamente defino, parecem ter uma vida própria e caótica fora dos meus códigos e tribunais. Por quê?
Koselleck: Porque você acredita, nobre disciplina, que seus conceitos não têm história. Você se vê como uma pura Sachgeschichte, uma história das coisas e das normas. Mas eu lhe digo: seus conceitos não são axiomas atemporais. São sedimentos de conflitos passados. Minha abordagem, a Begriffsgeschichte (História Conceitual), mostra que cada termo que você considera estável é, na verdade, um "concentrado de múltiplos significados históricos".
Houve um tempo, que chamo de "Sattelzeit" (aproximadamente 1750-1850), em que suas palavras-chave foram radicalmente transformadas. 'Revolução' deixou de ser um ciclo astronômico para se tornar um projeto de futuro. 'Estado' deixou de ser sinônimo de 'status' para se tornar um ente abstrato. Você se orgulha de suas definições, mas, como nos ensinou Nietzsche, "definível é apenas aquilo que não tem história". Seus conceitos mais importantes – ‘Direito’, ‘Estado’, ‘Democracia’ – não podem ser meramente definidos; só podem ser interpretados historicamente.
O Direito: Então você me diz que sou um museu de significados passados? Que carrego o peso de eras em cada palavra?
Moscovici: Mais do que isso! Professor Koselleck lhe deu a dimensão diacrônica, a profundidade do tempo. Minha teoria, a das Representações Sociais, lhe oferece a dimensão sincrônica, a vida social dos seus conceitos hoje. Um conceito jurídico só ganha força e eficácia quando ele deixa seus livros e se torna uma "teoria do senso comum" na mente das pessoas.
Isso acontece por dois processos. Primeiro, a ancoragem: a sociedade "ancora" um novo e assustador conceito jurídico (como ‘união estável’ ou ‘crime ambiental’) em categorias que já lhe são familiares. Segundo, a objetivação: o conceito abstrato é transformado numa imagem concreta, num núcleo figurativo. ‘A Justiça’ se torna uma senhora de olhos vendados. ‘O Estado’ se torna o Leviatã ou o ‘Pai dos Pobres’.
Sua crise, nobre Direito, vem desta constatação: você não tem o monopólio do significado dos seus próprios termos. A sociedade está constantemente criando representações sociais sobre você, que podem coincidir ou entrar em violento conflito com suas definições formais. É neste espaço – entre a norma e a representação – que a sua eficácia é decidida.
Lakoff: E eu lhes digo que tanto o sedimento histórico do Professor Koselleck quanto a representação social do Professor Moscovici são construídos sobre uma fundação ainda mais profunda: a metáfora conceitual. Nós, seres humanos, só conseguimos compreender abstrações como as suas, nobre Direito, através de metáforas baseadas em nossa experiência física e concreta.
Seu próprio mestre, Koselleck, intuiu isso ao falar do "significado metafórico" de certos conceitos. O pensamento jurídico não é puramente lógico; ele é fundamentalmente metafórico. Nós entendemos O DIREITO COMO UM EDIFÍCIO (com 'alicerces', 'pilares', 'brechas'). Nós concebemos os DIREITOS COMO POSSES (nós os 'temos', 'perdemos', 'defendemos').
A grande virada da "Sattelzeit" que Koselleck descreve foi, na verdade, uma mudança de metáforas dominantes. A sociedade passou de O DIREITO É UM COMANDO DIVINO para O DIREITO É UM CONTRATO. E hoje, as maiores batalhas em seus tribunais são batalhas para impor a metáfora vencedora. A questão do aborto é uma batalha entre duas metáforas: O FETO É UMA PESSOA versus O CORPO DA MULHER É UM TERRITÓRIO SOBERANO. A metáfora que vencer "enquadra" a realidade e torna a sua conclusão a única que parece "natural". Seus conceitos não são apenas históricos ou sociais; eles são corporificados.
O Direito: (após um longo silêncio, com um tom de revelação) Então... eu não sou um edifício. Ou melhor, sou um edifício cujos tijolos são metáforas, cuja argamassa são as representações sociais e cujas fundações se enterram nas camadas geológicas da história. Minha crise não é de lógica, mas de autoconhecimento. Eu acreditava ser uma estrutura, e vocês me revelaram que sou um organismo. Um organismo vivo, que respira na mente cognitiva das pessoas, que se alimenta das crenças sociais e que carrega em seu DNA as cicatrizes da história.
Minha tarefa, portanto, não é apenas definir, mas compreender. Compreender as histórias contidas em minhas palavras. Compreender as crenças que dou à luz na sociedade. E compreender a arquitetura metafórica do meu próprio pensamento. Talvez, ao fazer isso, eu não seja menos rigoroso, mas infinitamente mais justo.
(Fim do diálogo)

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